- Vergonha, eu?! Vergonha é roubar e não ter pernas para fugir!, ouvi uma vez em pequeno, e não o compreendi. Em vez disso fiquei envergonhado. A vergonha, apesar de ser um sentimento universalmente partilhado e uma emoção básica, nem sempre é devidamente abordado na clinica. Seja no pensar na vergonha que o nosso cliente parece carregar e nos traz para as sessões. E pensar conjuntamente com ele o que isso significa e qual o peso e impacto que tem na sua vida pessoal, social e familiar. E da mesma forma que alguns sentem vergonha em ouvir - "Continuas encostado à sombra da bananeira, é o que é!" e ali ficam. Também parece que muitos se deixam ou são empurrados para debaixo da sombra da vergonha e ali ficam a empalidecer. No Espectro do Autismo há muita vergonha, sempre o houve. Uma vergonha consentida, escondida e também sofrida.
No Espectro do Autismo é muito comum ouvirmos histórias sobre a vergonha, culpa ou ambos. Vergonha em ser ou ter alguém próximo, nomeadamente um filho/a com Perturbação do Espectro do Autismo. Seja o próprio que o diz, já mesmo em criança, que não quer que se saiba que tem aquele diagnóstico. Os professores que não o vão compreender ou os colegas que o vão gozar. Apesar de tudo, ainda assim, continua a haver inúmeras situações em que crianças, mas também jovens e adultos autistas se vêm envolvidos em determinadas situações que eles não parecem estar a deduzir ou sentir vergonha. Não obstante outros, como os seus pais possam sentir. Será que podemos afirmar que as pessoas autistas não sentem vergonha? Seja daquilo que fazem ou deixam de fazer mas também daquilo que são? Alguns adultos quando descobrem que têm um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo referem que na análise que fazem de alguns comportamentos seus passados podem sentir vergonha de alguns deles. No entanto, a emoção de vergonha é bastante mais complexa que isto e não tem de ser necessariamente negativa. Até do ponto de vista evolutivo a sua existência tem um sentido ao nível da regulação do comportamento social e do processo de auto-conhecimento.
Mas na clínica assistimos muito à expressão desta emoção. Ainda que a mesma possa estar embutida numa mescla de outras emoções ou traços de personalidade. A pessoa com uma perturbação psiquiátrica egodistónica e que já conseguiu reflectir sobre determinados episódios ocorridos na sua vida mais ou menos directamente relacionados com as suas problemáticas centrais tem associado a emoções de vergonha. Já ter recusado uma determinada oferta porque não se sentia capaz, ou porque perdeu aquele emprego importante porque não conseguiu estar presente numa entrevista de selecção. No entanto, algumas pessoas apresentam condições ou características egossintónicas e a pessoa parece mais identificada com algumas das suas características. E não parece avalia-las como negativas. E até parece demonstrar determinado orgulho nas mesmas porque sente que elas são sinónimo de uma personalidade forte. Nas perturbações de personalidade esta questão está muito presente. Desde as situações de ciúmes que são transformadas pelos próprios em amor. Ou as pessoas que sentem ser gostadas por todos. Mas também no próprio Espectro do Autismo, alguma da rigidez e inflexibilidade cognitiva e comportamental, associada ao facto de terem uma maior dificuldade em se colocar no lugar do outro levam a que que venham a ter maior dificuldade em conseguir deduzir vergonha de alguns dos seus comportamentos e decisões.
A vergonha parece estar em tudo. E parece sem dúvida influenciar em muito os mecanismos de defesa das pessoas e engrossar muitos dos nossos traços de personalidade. Lidar com a vergonha é algo do nosso quotidiano, e nem sempre vista de forma tóxica. Por exemplo, há uma certa vergonha que parece advir do amor não correspondido. Se já amou alguém e em determinada altura foi rejeitado, ou percebeu que o seu amor não era correspondido, penso que saberá como isso poderá ser vergonhoso. Ainda que possamos ir imediatamente em socorro de nós e dizer que o outro é que ficou a perder. Depois teremos a vergonha que provem da exposição indesejada. Ser chamado à atenção em público ou fazer um determinado comportamento que não se queria conhecido e é descoberto. Por exemplo, no Espectro do Autismo existem algumas destas situações, sejam as de exposição na sala de aula e na escola, nomeadamente em situações de bullying. Mas também em situações em que os mesmos se vêm envolvidos sem compreender que estão a ser usados/enganados e por exemplo acabam por ver coisas suas expostas (e.g., fotografias, textos, etc.). E uma vergonha muito habitual de se verificar também no Espectro do Autismo que é aquela derivada da exclusão. Muito frequentemente procuramos encaixar e sentir num grupo de pertença. E quando somos expulsos parece inevitável a emoção de vergonha não vir ao de cima.
A vergonha pode ser excruciante e pode ser uma das razões por que as pessoas crescem com traços destrutivos de personalidade, como o narcisismo. Mas a vergonha também é benéfica para a nossa sobrevivência de algumas maneiras. Por exemplo, as crianças são curiosas e querem explorar. Embora isso seja educativo, também pode ser perigoso se ela se interessar em demasiada por lugares e pessoas desconhecidas.
A vergonha mas também a culpa parecem ser duas emoções morais sinónimas, mas na verdade levam a comportamentos humanos contrastantes ou determinadas tendências comportamentais. A vergonha leva as pessoas a esconder ou negar os seus erros, enquanto a culpa leva as pessoas a corrigi-los. A forma como a vergonha e a culpa tem evoluído nos seres humanos ainda se mantêm desconhecida. As emoções morais influenciam profundamente o nosso processo de tomada de decisão e regulam substancialmente os nossos comportamentos sociais. Eles diferem das emoções básicas, como a felicidade e a tristeza em termos de exigir o entendimento das mentalidades de outras pessoas. Portanto, eles são também chamados de emoções sociais. A vergonha e a culpa são duas emoções morais particularmente importantes, porque eles servem como base de consciência para diferentes culturas. As emoções auto conscientes, como a vergonha, culpa ou orgulho, facilita as nossas interações sociais motivando-nos a aderir a normas sociais e padrões externos.
Sejam nas situações que levam as pessoas à psicoterapia, mas também no facto de necessitarem de pedir ajuda no processo psicoterapeutico, as pessoas sentem muito frequentemente vergonha. E mesmo os pais que se possa pensar estar fora deste processo, também eles sentem vergonha em determinado momento por sentirem que não foram capazes de dar uma resposta à situação dos seus filhos e teve de ser outro a fazer esse trabalho. Esta sensação de não conseguir fazer algo que se pressupõem que qualquer um tem capacidade ou ferramentas para o fazer é difícil de tolerar quando não ocorre e por norma deriva no sentimento de vergonha. Um pai deve ser capaz de cuidar do filho, da mesma forma que se pensa que um universitário deve ser capaz de fazer um determinado trabalho académico, ou um jovem que a partir dos 15 anos de idade já deve saber namorar. Mas também falamos da vergonha da pessoa com um quadro de dependência, seja alcoólica ou videojogos pela internet. O não ser capaz de se controlar. Afinal de contas só é preciso força de vontade, dizem as pessoas. E aqueles que sentem vergonha do seu corpo, sejam novo ou mais velhos, altos ou baixos. Então se passarmos para a área da sexualidade parece que a listagem é infinita.
Sentir vergonha, em qualquer uma destas situações tem um impacto devastador na pessoa e tem uma intensidade bastante desreguladora emocional e comportamentalmente. Nas pessoas do Espectro do Autismo esta emoção parece funcionar como um gatilho para muitas das dificuldades do quotidiano e que acabam por desempoderar ainda mais a pessoa que já se sente excluída do grupo de pertença. E que leva muitas vezes a um aumento dos níveis de depressividade e até mesmo de ideação suicida. Após todas estas situações por onde a vergonha pode passar fica-me a ideia do quanto por vezes deixamos escapar nas nossas relações, nomeadamente nas terapêuticas, a vergonha. Não tenha vergonha, mas de futuro procure olhar com mais atenção.
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