Deixa-o brincar com a comida!, dizia a mãe de Lucas (nome fictício). Mas ele está a mexer na comida com as mãos!, dizia a irmã do Lucas. E aquilo parece nojento, continua. Sim, eu sei!, disse a mãe. Foi a Terapeuta da Fala do Lucas que disse para deixar!, concluiu a mãe. As restrições alimentares do Lucas são bastantes evidentes. E foram elas que levaram os pais a solicitarem uma avaliação de despiste de Perturbação do Espectro do Autismo e que se veio a confirmar aos oito anos. Ultimamente tem estado mais entusiasmado com a cozinha, diz a mãe. Quer muito ver vídeos de alguns dos grandes cozinheiros profissionais. E pede para experimentar, refere. Os pais não sabem no que é que aquele interesse do Lucas vai dar. Mas os pais sentem que não lhes faz sentido interferir nessa escolha. Se ele gosta de cozinha e de experimentar, porque é que não haverá de o fazer?, pergunta o pai. Eu próprio fazia o mesmo com as ferramentas do meu pai e tornei-me mecânico automóvel, acrescenta. E eu segui o mesmo caminho da minha avó com os tecidos, refere a mãe. Passava horas a desenhar vestidos. E depois passava-os para os tecidos. Primeiro nas bonecas, a seguir nas minhas irmãs e depois em modelos, concluiu.
Lucas ainda tem um grande percurso pela frente. Seja em relação à escolha da sua profissão, mas também em relação a todo um conjunto de outras coisas. A sua condição leva a que seja necessário trabalhar consigo em determinadas áreas. Seja na Terapia da Fala onde ele já tinha começado. Mas também é importante que ele possa iniciar o acompanhamento psicológico. Há um mundo para conhecer e a ele próprio principalmente. Além de ter um conjunto de outras dificuldades que já se estão a observar na escola e que com o avançar do tempo e da própria exigência se vão acentuar e complicar se não for feito nada. E a culinária pode ser uma boa forma de o fazer. Isso mesmo, a culinária. E mais especificamente o o seu grande interesse especial pela cozinha.
Curiosamente eu também adoro a cozinha e poder experimentar cozinhar. E como tal penso que essa será uma excelente forma de melhor alcançar os objectivos terapêuticos propostos. E então, como é que a culinária nos pode ajudar aqui? O Lucas apresenta alguma evidência de questões sensoriais, sejam olfactivas, auditivas mas também tácteis. Algo que muitos poderiam logo dizer ao principio de que não poderia haver pior sitio para o Lucas estar do que a cozinha, certo? Mas as coisas podem ser adaptadas. Sempre o foram. Nós próprios fazemos isso constantemente na nossa vida. E também quando estamos a cozinhar. Quantos de vocês que cozinham não seguem a receita, mas sim o vosso instinto? A cozinha e o próprio acto de cozinhar é uma experiência e uma descoberta. E há vários equivalentes que podem ser pensados, nomeadamente para substituir. Mas também é importante poder pensar que a cozinha e o cozinhar e ter de lidar com os alimentos, manusea-los, trabalha-los, prepara-los, etc., é toda uma aprendizagem de contacto com as diferentes texturas. E aqui não estou a falar de traumatizar o Lucas obrigando-o a tocar em coisas que ele diz não querer. É poder em conjunto com ele aprender a explorar.
Se há cheiros que podem ser difíceis, uma cozinha é o sitio certo para os encontrar. Seja pela própria diversidade, mas também intensidade, a cozinha tem de tudo um pouco. Irá depender muito do tipo de cozinha em que se vai trabalhar. Quero acreditar que trabalhar numa cozinha de um restaurante Indiano a intensidade do caril e outros aromas possa ser uma presença constante. Mas há coisas que são transversais em qualquer cozinha. Por exemplo, o cheiro da cebola na frigideira e o nosso nariz por cima dela a apanhar com todos aqueles vapores. Mas há que pensar que há toda uma gama variada de outros ingredientes que podem ser descobertos para substituir a cebola e que possam servir o duplo propósito de dar o aroma certo à comida e não causar essa tão grande dificuldade no Lucas. E se há coisa que o Lucas gosta de fazer é pesquisar na internet horas a fio por novos ingredientes. Além disso, o Lucas também adora estar horas na natureza e a explorar. Porque não ajudar o Lucas a saber conhecer os cogumelos e onde e como os apanhar. Ou trufas e outras raízes que possam ser usadas como tempero. E além do mais, há uma outra característica que assenta que nem uma luva neste papel de possível futuro cozinheiro. Os pais do Lucas referem que ele adora viajar e explorar novos lugares. Não podia ser mais perfeito, penso eu.
Além disso, o Lucas também apresenta algumas características comprometidas de motricidade fina e grossa. E como tal, se há coisas que precisam de ser manipuladas é numa cozinha. Desde a destreza em usar uma faca para escalar um peixe ou descascar uma batata. Até o usar de um ralador ou um rolo para esticar a massa. Se pensássemos que não havia possibilidade, o que aconteceria às pessoas canhotas? Tudo pode ser adaptado e os utensílios igualmente.
E não esquecer que na cozinha é preciso seguir ordens. Mesmo quando estamos sozinhos na cozinha, há uma ordem para as coisas poderem acontecer. Basta pensar numa receita. E ainda mais quando estamos a trabalhar em conjunto com outras pessoas. E aqui também é importante poder pensar na importância que muitas destas tarefas têm para as funções executivas - ajudar a preparar, organizar, decidir. Mas também para as próprias relações interpessoais. É fundamental podermos conhecer as pessoas com quem vamos estar a trabalhar em conjunto. Saber no que elas são boas a fazer e como podemos melhor articular com elas.
Ainda pensa que o Lucas não pode vir a ser Chef por ser autista?
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