Lamento, mas não vos irei informar do lançamento da reedição do extraordinário filme de 1962 do Milos Forman com cenas inéditas, Voando sobre um ninho de cucos. E não, também não me enganei no titulo do texto - Voando sobre um ninho de cucas !! Aqueles que conhecem o filme, os que não conhecem vão vê-lo, imaginem que em vez do Randall McMurphy, interpretado pelo soberbo Jack Nicholson, era uma mulher. Até podia ser a enfermeira Ratched, tendo em conta os seus traços de crueldade e sadismo. Mas será que o impacto percebido seria igual? Será que qualquer um de nós avalia de forma diferente e enviesada a expressão comportamental dos homens versus mulheres na saúde mental ou enquanto pacientes numa ala psiquiátrica? E será que os próprios profissionais de saúde avaliam de forma igual os homens versus mulheres numa urgência hospitalar de psiquiatria?
No Espectro do autismo vai sendo cada vez mais frequente falar-se do fenótipo comportamental da mulher autista como sendo diferente do homem. E vamos sabendo cada vez mais que os próprios critérios de diagnóstico ao longo destes anos foram sendo suportados em estudos científicos em que as amostras utilizadas eram principalmente rapazes. Além do mais é sabido que as raparigas e mulheres no Espectro do Autismo são diagnosticadas mais tardiamente que os rapazes e homens autistas. Normalmente este intervalo costuma de ser cerca de dois a quatro anos a mais. Além do mais, é bastante frequente que os jovens e adultos autistas procurem com alguma frequências as urgências psiquiátricas, devido a várias situações de desregulação comportamental e emocional. Além da existência de diversas perturbações psiquiátricas que ocorrem em simultaneo no autismo e que para além de trazerem maior complexidade à apresentação do quadro clinico. Também levam à maior probabilidade e necessidade de cuidados psiquiátricos. Contudo, os dados mostram-nos que as raparigas e mulheres são frequentemente subvalorizadas nas suas queixas. Seja quando estas se apresentam nas urgências psiquiátricas e ainda não têm o diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas também quando o têm e referem, é comum verificar-se que algumas das comorbilidades normalmente existentes, nomeadamente a existência de Perturbação do Humor e ideação suicida, não estão a ser adequadamente atendidas.
A hospitalização desempenha um papel importante na estabilização das perturbações psiquiátricas agudas graves. Infelizmente, cerca de 10% das pessoas são readmitidas dentro de 30 dias de uma hospitalização psiquiátrica, e o risco de tentativas de suicídio e conclusão pós-alta também é alto. Os números de homens e mulheres hospitalizados em unidades de internamento psiquiátrico é semelhante.
Atendendo ao ainda grande desconhecimento de muitos profissionais de saúde acerca do Espectro do Autismo e da sua grande heterogeneidade. Além de se continuar a fazer uma compreensão do autismo com um viés masculino, isso tem implicações dramáticas para raparigas e mulheres autistas - talvez ainda mais para aquelas sem dificuldades cognitivas, já que este subgrupo tende a ser diagnosticado com menos frequência e mais tarde na vida.
Mas independentemente do desconhecimento em relação ao Espectro do Autismo e do próprio fenótipo diferente observado na rapariga e na mulher autista. Pode haver todo um impacto que advém da representação do papel social da mulher. E de como muitos dos seus comportamentos podem ser compreendidos de forma diferente e enviesada em relação àquilo que são as muitas expectativas sociais em relação às mesmas. Por exemplo, o facto destas se apresentarem "mais sossegadas" nas suas brincadeiras, ou "mais silenciosas", são todo um conjunto de comportamentos que muitos dizem esperar de observar nas raparigas e mulheres. Ou se as suas brincadeira apresentam um caracter mais repetitivo que o normal, mas se esta actividade for realizada com brincadeiras consideradas típicas de raparigas, as mesmas não parecem ser tidas em conta e são aparentemente explicadas pelas mesmas razões já anteriormente referidas. E quando as raparigas fazem coleção de bonecas, cromos autocolantes ou outros objectos, é considerado normal. Quando nos rapazes comportamentos semelhantes são vistos como repetitivos ou interesses especiais. E se tivermos as raparigas e mulheres mais queixosas do ponto de vista emocional isso parece ser observado como sendo comum e não algo preocupante. Mais uma vez por ser visto como habitual de acontecer. Assim como muitas das suas idiossincrasias sociais são vistas como comportamentos rudes. Até porque muita desta proactividade e de alguma forma comportamentos assertivos são vistos como pertencentes aos homens. E tendencialmente nas mulheres são observados como desadequados do ponto de vista moral. E se além de mulher for negra, parece que estes e outros enviesamentos ainda ocorrem com maior frequência e intensidade.
Tal como o Randall McMurphy fez no filme Voando sobre um ninho de cucos, é importante que alguém se infiltre no sistema e possa criar um motim face à forma como tudo isto ainda continua a acontecer.
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