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Vida normal

Foto do escritor: pedrorodriguespedrorodrigues

Como é que foi o teu dia Júlio (nome fictício)?, perguntei-lhe assim que ele se sentou no cadeirão. Normal, respondeu ele de forma simples enquanto se aconchegava melhor. Adoro um dia normal, disse-lhe. E tu, Júlio?, perguntei-lhe. Ficou a olhar para mim e parecia não saber bem o que me responder. Estás a perguntar-me se eu gosto de dias normais, é isso?, retorquiu. Sim, isso mesmo, disse-lhe. Nunca me tinham perguntado isso. Se gostava de dias normais. Normalmente aborrecem-se se eu respondo normal às milhentas perguntas que me fazem, referiu.


Porque não haveria de achar normal perder um ou mais transportes num dia? Ou esperar para apanhar outro porque aquele vai demasiado cheio? Ou pensar que há cada vez mais pessoas que parecem não saber viver em comunidade!? São coisas que são normais para mim, refere. São coisas que fazem parte do meu quotidiano, dos meus pensamentos, acrescenta. Hoje de manhã queria vestir a minha t-shirt branca, mas não a encontrei. Fiquei aborrecido nos primeiros dez minutos e depois vesti a t-shirt preta porque já estava atrasado. Há quem converse sobre essas coisas. Eu não me faz sentido. Até porque as acho normais. Além de achar que as pessoas não gostam assim tanto de falar sobre coisas normais, apesar de insistentemente o dizerem. Fico sempre com a sensação de que estão à espera de uma coisa qualquer fantástica, fora de série, conclui.


Júlio tem vinte e três anos. Foi diagnostico com Perturbação do Espectro do Autismo aos sete anos. A entrada no 1º ciclo foi determinante para os seus pais o terem levado ao neuropediatra. Já havia algumas suspeitas e principalmente inquietações em relação a alguns dos seus comportamentos. Principalmente na sua necessidade de fazer as coisas de uma determinada forma. Assim como da sua dificuldade em fazer de uma forma diferente daquela. Júlio foi crescendo com uma ideia clara do que se passava consigo. Os seus pais sempre fizeram questão de o fazer. Inclusive o seu pai tinha uma certeza inabalável de estar no espectro também. Mas o mesmo nunca quis saber de fazer avaliação para o saber, apesar de reconhecer a importância do mesmo.


Nunca percebi porque não falam de outras coisas no autismo? Foi uma das primeiras perguntas que Júlio me perguntou. Sabes porquê?, disse-o. Tenho algumas ideias, respondi-lhe. Mas gostava de poder saber acerca do que pensas sobre isso. Claramente que as pessoas ficam assustadas com isto do autismo e como tal parece que têm de falar muito sobre este assunto, ainda que não saibam o que dizem na maior parte das vezes, refere. Entristece-me que as únicas coisas que escrevem sobre o autismo é sobre as dificuldades, as necessidades, os deficit, os critérios de diagnóstico, o diagnóstico, o fazer ou não fazer o diagnóstico, o emprego ou a falta dele, o estigma social, a incompreensão, compreendes?, perguntou-me. Seja nos artigos científicos ou quando fazem uma reportagem na televisão ou numa revista. Parece que não há mais nada a dizer sobre o autismo ou as pessoas autistas. E ainda mais perco a paciência quando leio que afinal as pessoas autistas querem ter relações sociais ou ter filhos e casar. O que é que as pessoas pensam? Já me custa a aceitar isso da população em geral, agora de cientistas e clínicos parece-me absurdo, percebes?!, perguntou-me. Júlio perguntava-me muitas coisas. E eu respondia-lhe. E isso era uma coisa normal entre nós.


Às vezes não encontro a roupa de que gosto, mas isso não é nada de mais. Na verdade é uma coisa muito normal. E não, não me parece que seja algo que as pessoas possam gostar de falar. Eu certamente não tenho nenhum desejo em conversar sobre isso. Falo contigo sobre isso na consulta mas exclusivamente para saber como posso resolver a situação ou para tentar compreender o porquê de determinadas coisas que acontecem. Agora falar sobre isso com os meus colegas no trabalho não vejo nenhum interesse. Gosto de falar sobre os meus interesses. E não, não gosto que digam ou pensem que os meus interesses são interesses restritos ou que fazem parte do meu diagnóstico. Se não querem falar sobre isso não falem. Agora escusam de ser desagradáveis sobre os meus interesses. Eu também não ando por aí a apregoar sobre o quanto acho absurdo determinados interesses dos meus colegas.


Tudo isto faz com que eu seja uma pessoa mais calada? Sim, é verdade. E então? Há mais pessoas assim. Não tem mal ser uma pessoa mais calada. Cortei o cabelo esta semana, diz-me. Vês, isso é uma coisa normal e estou a partilhar contigo, disse-me. É verdade, respondi-lhe. Por falar disso, lembrei-me de que tenho de ir cortar o meu. O que achas?, perguntei-lhe Riu-se. Nunca ninguém me tinha perguntado sobre a minha opinião em relação ao seu cabelo. Isso é uma coisa normal?, perguntou-me. Sim, bastante. Talvez mais numas pessoas do que em outras, referi-lhe. Gostas de falar sobre o cabelo?, perguntou-me. Mais ou menos, referi. Não é uma coisa que tenha grande interesse, mas falo, continuei. E nesse caso porque é que falas?, perguntou-me. Porque não me importo. Provavelmente é isso, não é uma coisa que não me importe de o fazer. E além disso penso que é uma coisa que certas pessoas gostam de o fazer. Além do mais não é um assunto em que as pessoas fiquem muito tempo a conversar. O que achas?, perguntei-lhe. No cabeleireiro gostam de falar sobre isso, mas penso que isso é normal, certo?, perguntou-me. Acenei que sim.


A consulta chegou ao fim, certo?, perguntou-me. Sim, verdade, disse-lhe. Gostei da nossa conversa normal de hoje, disse-me. Não te esqueças de ir cortar o cabelo, disse-me já meio fora da sala. Passei a mão pelo cabelo e sorri.


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