Na realidade o jogo chama-se Verdade ou Consequências. Mas a vida tem muito mais das duas coisas em conjunto do que uma delas isoladamente! Ainda se lembram de o jogar na adolescência? Eu recordo-me daquelas tardes sem aulas em que nos juntávamos em grupos de seis. Nunca joguei em nenhum destes jogos em que o grupo fosse impar. Esta devia ser uma daquelas consequências à priori. Em determinados momentos do jogo a tomada de decisão entre alguém ficar a saber algo mais secreto sobre a tua pessoa ou sujeitares-te à consequência decidida no grupo não era fácil. Se por um lado tínhamos aprendido sobre a importância da verdade, na adolescência já tínhamos experimentado que nem todos estavam preparados para a receber! E ainda que as consequências por vezes fossem boas, havia quem não estava para se sujeitar a essa aleatoriedade. É um pouco como algumas pessoas adultas se sentem quando recebem o seu diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo.
A nossa vida é uma grande viagem e boa parte dela passa por encontrarmos o nosso lugar no Mundo. E olhem que este não é um processo directo. Já não se trata de um processo em que se encontra a nossa tribo ou não. Há mais vai-e-vem do que possamos imaginar.
As pessoas procuram e muitas delas encontram o melhor ajuste possível no lugar onde estão na vida e, se as opções disponíveis não se encaixam na sua identidade actual, elas procuram flexibilizar e moldar-se para se adaptarem ao seu grupo com uma melhor correspondência possível. E se continuarem a encontrar mais pessoas e diversificadas então a probabilidade de encontrarem pares adequados a quem se juntar é maior. À medida que o processe de crescimento continua, amadurecemos à medida a que nos adaptamos. Interiorizamos o que gostámos de determinadas experiências e procuramos deixar aquilo que não nos agrada.
No entanto, nem todos os aspectos da identidade de uma pessoa recebem o mesmo nível de escrutínio, e algumas adaptações continuam sem um exame consciente. Consequentemente, durante todo esse processo iterativo, a verdadeira motivação pode ser facilmente obscurecida. Torna-se difícil diferenciar entre mudanças feitas para o bem de si mesmo e mudanças feitas para satisfazer os outros. Parece que não nos lembramos de ter feito mudanças drásticas, apesar de haver um somatório de pequenas mudanças aqui e ali ao longo da vida. É como a nossa aparência que muda com a idade; o nosso rosto não é visivelmente diferente no quotidiano, mas as mudanças são aparentes com o tempo.
As coisas no entanto nem sempre correm de forma tão normativa e por vezes temos alguns percalços, uns menores mas outros maiores. Quando alguém percebe que não entende mais a fonte da sua motivação e, consequentemente, sente um nível de stress significativo, isso pode significar a presença de uma crise de identidade. Quando você chega a esse ponto, você pergunta-se: quando foi a última vez que me lembro da liberdade de ter sido autentico? Passamos a perceber que mudou aquilo que dizemos, como o dizemos, seus interesses, como prioriza o seu tempo ou tudo o que anteriormente escrevi ao mesmo tempo. Mudamos a nossa identidade fundamental. Não nos parece suficientemente claro se essa lembrança antiga de nós próprios existe. Não está claro se isso seria um passo em direção à autenticidade ou um passo atrás. Percebemos que estamos numa crise de identidade num momento em que não estamos a ter muita sorte para nos ligarmos a novos amigos após uma mudança recente. A pessoa parece sentir que à medida que envelhece, passou a censurar-se mais e mais. A sensação descrita em muitos destes momentos é a de um afogamento no mar de expectativas às quais a pessoa se vinculou. A sensação não ficou apenas neste nível da identidade e passou também a ser descurada a própria higiene. A sensação de esgotamento parece ser avassaladora. E a culpa sentida ao longo deste período parece ser crescente.
Nestes momentos são muitas as pessoas que apesar de terem tido uma vida medianamente equilibrada sente que há algo que está bastante desgovernado e que precisam de compreender o que se passa. E atendendo a que há uma maior autonomia nesta altura da vida adulta sente que pode procurar uma ajuda especializada. Mas na mesma altura começa a sentir alguns receios do que pode vir a ouvir do resultado desta procura de respostas. E decide investir em algumas pesquisas online sobre alguns dos seus sintomas e preocupações. Não sem antes passar por um primeiro momento de negação de que não deverá ter problema psicológico algum. Mas ao fim de algum tempo e das inúmeras possibilidades procura uma ajuda especializada que lhe sugere a realização de uma avaliação psicológica para despistar as suas queixas. E qual não parece ser o espanto de algumas quando ouvem dizer que apresenta uma Perturbação do Espectro do Autismo nível 1. Volta a sentir uma nova fase de negação e de pesquisa online acerca desta possibilidade questionando a veracidade do diagnóstico.
E nestas pesquisas que se realizam acerca da confirmação do diagnóstico a pessoa depara-se com vários conteúdos e nem todos cientificamente válidos. Será fundamental neste ponto que a pessoa se possa informar junto do profissional que a avaliou e diagnosticou para saber qual ou quais os lugares na internet onde pode encontrar informação cientificamente válida acerca da sua condição. Por exemplo, poderá dizer que no www.autismonoadulto.com ou no site do PIN - Em todas as fases da vida, poderá encontrar informação cientifica e adequada às perturbações do neurodesenvolvimento ao longo do ciclo de vida.
Mas além desta questão fundamental há muitas outras informações válidas que se prendem com questões conceptuais. Por exemplo, a pessoa poder confrontar-se com a designação condição ao invés de perturbação. E isso pode soar-lhe confuso. Porque se saiu do gabinete do psicólogo ou médico com a ideia de perturbação associada ao seu diagnóstico agora ficou com a ideia de que afinal poderá ter uma condição. E a sua pesquisa continua. A a identificação que faz a um discurso associado à designação condição ao invés de perturbação parece-lhe ser muito mais favorável e adequado à sua forma de pensar e sentir. Até porque o discurso da perturbação muitas vezes esgota-se nos critérios de diagnóstico. A pessoa sente que na "condição" é melhor compreendido, seja por si próprio mas também pelos outros. A pessoa sente que a sua forma única de ser a que alguns designavam de esquisitices na verdade é apenas uma outra forma de ser. E que não necessita de ser igual aos outros ou a determinados padrões sociais. Ainda que reconheça a importância de alguns deles.
Mas a verdade é que as perguntas não deixaram de se suceder. As perguntas sobre as suas próprias intenções ou expectativas seriam algo que o próprio realmente desejava? E a partir de alguma maior flexibilização da sua parte sentiu que podia sentir as coisas que antes lhe pesavam enormemente de forma mais leva e menos autoritárias. E com esse progressivo questionamento foi sentido que a sua vida parecia voltar a um certo normal. Seria aquele diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo nível 1 real? Poderia o psicólogo ter ficado influenciado pelos sintomas pelos quais estava a passar no momento da avaliação? Se é verdade que sou do Espectro do Autismo seria expectável que passasse a fazer determinados comportamentos mais adaptativos?, questionava-se. Ou terá sido o facto de ter recebido o diagnóstico que me levou a procurar uma forma diferente de olhar para mim próprio, para os outros e o Mundo e com isso a minha vida passou a ser sentida de forma diferentes?, continuava a perguntar-se.
E se assim o era, será que os critérios de diagnóstico usados para o autismo serão assim tão abrangentes? E o facto de ter conhecido um número significativo de pessoas que se auto-diagnosticaram através do preenchimento de um questionário de auto-relato a pessoa aumentou ainda mais a sua desconfiança sobre todo este processo. Será que as pessoas que se autodiagnosticam e são tão facilmente aceites pela comunidade autista não podem estar a desvirtuar a verdade acerca do diagnóstico? E depois de ter conhecido várias outras pessoas com um conjunto de situações bastante mais graves com o mesmo diagnóstico que o seu não deixou de perguntar se não seria uma vergonha para si e para o grupo que agora parecia representar dizer-se autista? Quando há outras pessoas que sendo autistas o parecem mais autistas do que ele próprio que tem um conjunto de sinais mais subtis!
As dúvidas, sejam estas ou outras vão surgindo em muitos casos de suspeita ou de confirmação de Perturbação do Espectro do Autismo. A variabilidade é suficientemente grande e a própria evolução ao longo do tempo também para levar a estas dúvidas. Será fundamental que os profissionais de saúde, nomeadamente aqueles que mais directamente contactam com esta comunidade possam disponibilizar informação e acompanhamento continuado. Assim como também é fundamental que os grupos de referência na comunidade autista possa servir de suporte mas também de encaminhamento para os respectivos serviços para ajudar a responder a estas verdades e consequências.
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