Todos já ouviram dizer esta frase, certo? Uma xícara de arroz para duas xicaras e meia de água! E de seguida alguém afirmar que não tem nada que saber e que qualquer um sabe fazer arroz, correcto? Mas quem já experimentou sabe que não é bem assim. E que por vezes se pode tornar bastante mais complicado do que isso!
E o porquê de vir falar de receitas culinárias? perguntam alguns. Muitos daqueles que estão dentro do espectro do autismo, seja porque têm esse diagnóstico, ou porque são familiares de alguém com esse diagnóstico, sabem que a relação das pessoas autistas com a cozinha nem sempre é a melhor. Seja por causa das restrições alimentares e das questões relacionadas com as hipersensibiilidades olfactivas, tácteis e outras. Mas também pela maior dificuldade em conseguir seguir uma receita de um determinado prato. Ou por toda a necessidade de organização para chegar à conclusão da refeição. E já para não falar dos aspectos da motricidade na utilização de determinados objectos da cozinha, sendo que alguns deles são cortantes. Como podem ver, há várias razões de sobra que levam a que as pessoas autistas se possam afastar da cozinha. Mas algumas vezes, os próprios pais sentem alguma relutância em ajudar os filhos a poder experimentar participar lá em casa na realização das refeições.
E em última análise, a pessoa autista adulta, vivendo sozinha, pode perfeitamente perguntar-se - Cozinhar para quê? Ou para quem? Só para para mim não vale a pena ter tanto trabalho!
No momento em que estou a escrever este mesmo texto estou a cozinhar o almoço cá em casa. A situação aparentemente simples de estar sentado na mesa da cozinha a escrever no portátil e de costas voltadas para a bancada da cozinha e do fogão, poderá ser algo bastante desafiante para algumas pessoas, nomeadamente no espectro do autismo. Até porque se podem deter em algum hiperfoco quando no computador e levá-los a não estar suficientemente atentos aos tempos de cozedura dos alimentos.
Muitos de nós não autistas poderão pensar que bastará apenas seguir uma receita. E tendo os alimentos necessários em casa, não será preciso mais nada. Mas não é bem assim! E se a lhe disser que o tempo de preparação da refeição pode ser algo bastante importante para a pessoa autista? E esta especificidade pode ir ao ponto de ser importante referir qual a energia gasta na preparação daquela mesma refeição! Ou que haver indicações suficientemente claras para ajudar a pessoa autista a decidir qual a melhor receita para aquele dia e situação pode fazer toda a diferença? E haver receitas que possam ser completas mas simples e que possam ser adequadas para os dias de meltdown? E todo um conjunto de diferentes possibilidades para aqueles que se enquadram enquanto no grupo de pessoas autistas que procura determinado tipo de sensações sensoriais. Ou pelo contrário, pertence ao grupo de pessoas autistas que pretende evitar essas mesmas experiências. Ou simplesmente, quer ir progredindo no se conhecimento na cozinha. E haver receitas que possam ser feitas e repetidas, até porque há dias que as pessoas autistas não se sentem assim tão preparadas ou dispostas a fazer algo novo. Mas ainda assim querem fazer uma refeição adequada ao evento de receberem algumas pessoas amigas lá em casa.
Isso mesmo, leu bem. A pessoa autista convidou um grupo de pessoas amigas para vir a sua casa comer e passar uma parte do serão!
Muitos de nós adultos, sabemos da importância de saber cozinhar para viver de forma autónoma e independente. Podemos sempre contar com as idas a casa dos pais e trazer um conjunto de tupperwares recheados de coisas boas lá de casa. E para aqueles que vivem com a sua companheira/o, podem sempre contar também com a sogra para os ajudar. Mas ainda assim, as pessoas adultas sabem o quanto fundamental é cozinhar para se tornarem autónomos. E como tal, poder haver esta importãncia dada às pessoas autistas é fundamental. Ou seja, a partir de determinado momento na adolescência poder existir uma maior disponibilidade para integrar em casa a participação do filho/a na cozinha para desenvolver algumas competências no cozinhar. E não ficarmos apenas pelas receitas básicas de arroz com salchichas. Ainda que seja um prato nutriente e fácil de fazer em qualquer momento. É importante poder pensar que a pessoa autista adulta pode perfeitamente querer convidar um amigo/a lá a casa e procurar seduzir a pessoa com alguns dos seus dotes culinários.
Muitas vezes em saúde mental ouvimos dizer que não há receitas. Não há receitas para a mudança deste ou aquele comportamento, dificuldade ou necessidade. Mas podemos pensar, tal como na cozinha, que há receitas que parecem resultar sempre, ou na maior parte das vezes. Sermos claros, honestos e capazes de fornecer uma visão de esperança aos nossos filhos com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo é fundamental. Poder pensar que falar sobre o diagnóstico e não escondê-lo é algo fundamental para ele/a, nomeadamente para se conseguir vir a proteger de muitas situações menos positivas, nomeadamente do estigma. Não será o esconder ou adiar o diagnóstico que vai ajudar. Muito pelo contrário. Mas também aceitar a diferença e o fazer diferente. Tal como na cozinha, muitos de nós tem a sua forma de cozinhar. E ainda assim, a comida fica igual ou mais saborosa. O mesmo acontece no espectro do autismo. O ser ou fazer diferente é isso mesmo, um ser e fazer diferente. E se podemos pensar que cozinhar tem de ser para os outros e poder agradar aos outros. É importante poder pensar, seja no autismo ou fora dele, que é igualmente ou até mais importante podermos cozinhar para nós próprios, até como comportamento de autocuidado. E não ter de ficar a aguardar a validação dos outros.
Há muito para dizer sobre este tema, assim como em tudo. Mas por agora tenho de ir desligar o arroz!
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