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Foto do escritorpedrorodrigues

Um é bom, dois é mau, três uma multidão

Muito frequentemente ouvimos dizer que as pessoas autistas não são sociáveis ou que não procuram a interacção com os colegas. Mas deixem-me que vos diga que nos dias de hoje ouvimos muitas coisas e nem todas elas são necessariamente verdade. Oiço muitas vezes os meus clientes do Espectro do Autismo dizerem-me que frequentemente sentem dificuldade em ter de falar com mais do que uma pessoa ao mesmo tempo. Confesso que por vezes também sinto isso mas sei quais as razões porque isso acontece. E já vi o mesmo acontecer com outras pessoas que não são autistas e também consigo identificar algumas razões possíveis para isso acontecer, facto que essas pessoas confirmam. Então porque é que se torna difícil para as pessoas no Espectro do Autismo de falarem com mais do que uma pessoa? Pare, escute e olhe.

Algumas pessoas no Espectro do Autismo dizem que já tiveram esta sensação várias vezes - o de ser difícil de conversar com mais do uma pessoa ao mesmo tempo. Ao ponto de sentirem necessidade de se ausentar física ou mentalmente da conversa que estavam a ter quando houve mais pessoas que se juntaram. Facto que leva normalmente a perda de informação importante ou de alguma situação mais incómoda ou desadequada por parte da pessoa autista. E quando estes episódios acontecem muitas vezes, as pessoas evitam mais frequentemente estas situações, o que as pode levar a serem vistas como anti-sociais ou que não desejam a interacção com os outros. Mas não tem nada a ver com isso. Algumas dessas mesmas pessoas dizem que já conseguiram encontrar algumas estratégias para resolver a situação. Por exemplo, quando querem estar com algum amigo seu, ligam-lhe e combinam em estar apenas com ele. E fazem o mesmo quando querem estar com um outro amigo. Estranho? Talvez para alguns, mas é funcional para algumas destas pessoas e isso é o que importa. E já agora, quantos de vocês não desejaram já falar apenas com aquele amigo e não com todo o grupo?


Conversar, trocar ideias, dialogar, relacionar com as outras pessoas é uma tarefa exigente, apesar de muitos pensarem que não. E cada um de nós tem a sua capacidade de poder processar a informação que recebe. Além disso, a psicologia cognitiva já há muito que nos diz que o nosso cérebro é uma ferramenta extraordinária, mas tem uma capacidade limitado de processamento de informação. Ou seja, fazer duas coisas ao mesmo tempo leva ao prejuízo de uma delas. Por isso, quando alguém está a falar connosco e a teclar no smartphone ao mesmo tempo, dizemos para ela parar de teclar e olhar para nós. Enquanto a outra pessoa normalmente responde que consegue fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Mas não com a qualidade desejada. Como tal, conversar com as pessoas leva a ter de ser tido em conta o processamento da informação, nomeadamente nas pessoas do Espectro do Autismo.


É sabido que algumas pessoas autistas parecem ter uma capacidade aumentada para o processamento de mais do que uma fonte de informação. Por exemplo, estarem a desenhar e a ouvir na perfeição o que o professor diz ao ponto de dizerem ipsis verbis tudo aquilo que ele disse nos 4 minutos anteriores. Algumas destas pessoas sentem que isso pode ter a ver com a sua hipersensibilidade auditiva e a capacidade de destrinçar os sons com uma capacidade única e fantástica. Estas hipersensibilidades podem ter um impacto profundo no quotidiano da pessoa e ao longo da sua vida. Os sintomas sensoriais podem ser angustiantes, provocando ansiedade, o que pode levar à abstinência sensorial em ambientes rico em estímulos como mecanismo de coping. Ou seja, em ambientes com muita estímulos sensoriais, as pessoas autistas se não puderem fugir fisicamente do local, acabam por se evadir mentalmente, como forma de se poderem proteger da sobrecarga cognitiva e imersão sensorial. De facto, a hipersensibilidade sensorial tem sido descrita em relatos autobiográficos como uma sobrestimulação que é desconfortável ou dolorosa semelhante "à broca do dentista a tocar no dente". Ainda que muitas outras pessoas autistas possam descrever que alguns estímulos são sentidos como fonte de prazer e inclusive procurados de uma forma deliberada pelos próprios.


A investigação, através da utilização de paradigmas de dupla tarefa têm desmontado que os participantes autistas apresentam uma melhor capacidade de resposta face aos não autistas. Principalmente quando essa informação é apresentada visualmente e auditivamente. No entanto, a interacção com as pessoas é mais do que ver e olhar. É também sentir, seja do próprio mas também procurar intuir o que o(s) outro(s) estarão a sentir; pensar nos seus próprios pensamentos, seja aqueles que vai dizer mas também aqueles que não deverá fazer, assim como quais serão alguns dos pensamentos ou ideias da(s) outra(s) pessoa(s); e falar. Aquilo que assumimos como algo fácil tem um conjunto de procedimentos e processos que torna a tarefa na sua análise detalhada como algo mais complexo. E para as pessoas autistas é frequentemente difícil. Porque, a sua capacidade aumentada de percepção pode levar a uma maior suscetibilidade à distração ao realizar uma tarefa com baixa carga perceptiva (como resultará automaticamente no processamento irrelevante para a tarefa). Por exemplo, em determinados estudos, os participantes autistas mostraram um aumento do efeito de interferência do distractor sob baixos níveis de carga perceptiva em comparação com os não autistas ao executar uma tarefa de pesquisa de letras na presença de distractores.


Se continuarmos a escutar aquilo que as pessoas autistas nos dizem iremos certamente perceber melhor. Por exemplo, muitas vezes dizem que a dificuldade nestas situações reside no seguinte. Quando estão a falar com alguém há um conjunto muito grande de estímulos a processar, seja os verbais mas também os não verbais. As pessoas estão a falar mas também estão a gesticular e a mexer os lábios e os olhos. Para além disso há o próprio conteúdo da conversa e ter de descodificar todo um conjunto variado de informação. E se a isso juntarmos que no ambiente envolvente também haverá certamente factores distractores, como ruído, luzes ou outras pessoas a passarem. Ainda fica mais complica se em vez de estar a falar com uma pessoa estiver num grupo com três pessoas. Por essa razão, algumas vezes as pessoas autistas optam por estar apenas numa situação de um para um. E mesmo nessas situações poderão optar por não estar a olhar para a cara da outra pessoa porque ainda assim a informação que estão a receber parece ser em grande quantidade e está a complicar a tarefa de descodificar a mensagem.

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