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Um poder nunca vem só

A frase costuma ser - Um problema nunca vem só! Mas do que adianta falar dos problemas dessa forma? Eles existem. E isso é um facto. Por isso é preferível encara-los de outra forma. Até porque não é só os problemas que vêm uns atrás dos outros. As coisas boas também. E a vida tem muita coisa boa.


Esta é a mensagem que o Leandro (nome fictício) me enviou depois de eu ter respondido à sua outra mensagem, em que dizia que não podia vir à consulta porque tinha tido uma noticia menos boa quando foi a uma consulta médica.


O Leandro tem 18 anos. Faz anos daqui a seis meses, dia 14 de outubro. Este ano seria altura para entrar na Universidade. Leandro quer ir para jornalismo. Mas este projecto ficou adiado.


Aos 8 anos os seus pais levaram-no a uma consulta de Neuropediatria. A escola estava com algumas queixas acerca do comportamento do Leandro. E as recomendações habituais que os pais estavam a dar pareciam não estar a funcionar como até então. O Leandro também tinha mudado de escola, devido à mudança de casa. Os pais pensavam que as dificuldades se prendiam com todas essas mudanças. E ainda não tinham percebido que estava para chegar outra mudança. O médico diagnosticou uma Perturbação do Espectro do Autismo.


Os meus pais ficaram mais abalados do que eu, disse Leandro. O meu pai levou as mãos à cara e a minha mãe chorou, continuou. Eu não sabia que nome era aquele, mas o médico parecia tranquilo a falar aquelas palavras enquanto olhava para mim, refere. E isso parecia ser uma coisa boa. Além disso, o que o médico fez foi explicar aquilo que me acontecia na escola e também em casa. E isso pareceu-me ser uma coisa boa. Até porque ele parecia saber o que estava a dizer. Eu até pensei em como é que ele havia de ter adivinhado tudo aquilo, conclui.


Aprendi que a minha vida tem muitas coisas, diz. Não é de estranhar que isso aconteça, ainda que eu tenha procurado que a minha vida se mantivesse basicamente inalterada, continua. Não tem problema. Eu continuo a lutar para que muito dos meus dias continuem iguais, e a vida encarrega-se de randomizar as coisas, diz. É um jogo de paciência, risse.


Todos os dias há uma novidade na minha vida, refere. Alguém que diz uma coisa que eu não esperava. Alguém que faz uma coisa que eu não gostava que acontecesse. Aquilo que eu passei a fazer desde bastante cedo foi um dicionário dessas mesmas novidades, acrescenta. Sendo que reservei um capitulo especial para as coisas indesejáveis e a evitar. Chamei-lhe mesmo isso "coisas indesejáveis e a evitar", conclui.


Quando o médico me disse que eu tinha cancro, encarei isso como uma novidade, diz. Não percebi naquele momento que tipo de novidade seria. Mas depois de o médico me dizer a gravidade da situação não hesitei em colocar nas coisas indesejáveis e a evitar, refere. Se isso me abalou? pergunta. Penso que não. É uma outra coisa entre tantas outras milhentas coisas que já aconteceram na minha vida. Esta pode vir a tirar-me a vida, é verdade. Mas o facto de já ter sido salvo três vezes de ser atropelado na passadeira também, diz. E não é por isso que eu fiquei com alguma questão relativamente às passadeiras. Agora com o cancro é o mesmo. O meu médico diz-me que tenho de fazer os tratamentos e eu vou fazê-los. Já lhe expliquei como é que eu gosto de fazer as coisas e ele parece ter compreendido, conclui.


Há muita coisa que acontece em simultâneo com o autismo. Fala-se muito das comorbilidades psiquiátricas. Assim como de outras questões que ocorrem com maior frequência. Mas também há muitas outras situações que ocorrem com igual frequência quando comparamos com pessoas neurotipicas. Umas destas coisas são as taxas de cancro que são muito semelhantes em pessoas autistas e não autistas. No entanto, estima-se que as pessoas autistas tenha o dobro da probabilidade de morte por cancro comparado com as pessoas não autistas. E porquê? Há quem pense na desigualdade nos cuidados oncológicos. E na forma como os profissionais de saúde em oncologia devem estar cientes dos desafios no cuidar de pessoas autistas.


Em primeiro lugar, as equipas de oncologia precisam de estar particularmente atentas às crianças, adolescentes e adultos autistas, uma vez que os seus perfis fisiológicos e neuropsicológicos únicos podem causar dificuldades na sua adesão/cumprimento das estratégias clínicas e "padrão de cuidados" em vigor para outros pacientes. Os doentes oncológicos têm de compreender cognitiva e emocionalmente os desafios de uma doença grave, enfrentar investigações e tratamentos invasivos enquanto lidam com as lutas próprias do autismo. Por conseguinte, os profissionais de saúde em oncologia devem estar cientes de que as manifestações comportamentais e de comunicação podem constituir uma ameaça particularmente significativa para a prestação de cuidados ideais nesta população muito heterogénea. Por exemplo, a inflexibilidade cognitiva é uma dificuldade fundamental que pode manifestar-se no contexto dos cuidados com o cancro, incluindo em pessoas autistas. Neste contexto, as equipas de oncologia desconhecedoras dos sinais de autismo podem estigmatizar os doentes como sendo doentes difíceis ou com fraca adesão. Globalmente, se não forem abordadas, as características específicas da comunicação e do comportamento habitual no autismo, correm o risco de afectar de forma destrutiva as operações dos serviços clínicos e conduzir a uma imprevista morbilidade e mortalidade.


Em segundo lugar, para satisfazer as necessidades das pessoas autistas com cancro, os clínicos devem colaborar de forma imperativa e eficaz com os pais/famílias e outros cuidadores com o objetivo de adaptar constantemente a comunicação e monitorizar/gerir o ambiente clínico. Não se pode sublinhar suficientemente que trabalhar em parceria com os pais/cuidadores é de importância fundamental para priorizar e coordenar intervenções e tratamentos, e prestar cuidados de apoio adequados ao doente e aos seus familiares/procuradores de cuidados. Esta colaboração deve ser reavaliada regularmente para a eficácia na avaliação dos sintomas e problemas relatados pelo doente e pelo cuidador.


Em terceiro lugar, no que diz respeito à comunicação, uma vez que a informação é fornecida maioritariamente verbalmente, os profissionais de saúde devem utilizar estratégias e ferramentas adequadas ajustadas às características do paciente para facilitar a transmissão e compreensão da informação.


Em quarto lugar, é fundamental estabelecer um plano de cuidados globais individualizado e protocolos específicos antes do início de qualquer exame, tratamento ou procedimento pode ajudar a equipa de saúde a antecipar possíveis perturbações. O desenvolvimento destas estratégias deve envolver sempre o doente, a família e/ou os cuidadores primários e, na medida do possível, a experiência dos especialistas em autismo e das pessoas autistas.


Em quinto lugar, os ambientes clínicos raramente se adaptam a um perfil sensorial individual, e os pacientes podem associar os cuidados oncológicos a uma experiência particularmente hostil. Isto é ainda mais difícil em situações que envolvem crianças pequenas, em que as famílias desempenham um papel central como interface. Aproveitar o tempo para expor gradualmente o paciente aos vários instrumentos utilizados durante a terapia (e.g., equipamento de monitorização, agulhas, ligaduras) e a sua exploração sensorial pode representar uma forma de aumentar as chances de uma colaboração óptima.


Em sexto lugar, os profissionais de saúde em oncologia devem estar cientes de que os seus pacientes, independentemente da idade, podem ter autismo não diagnosticado e ficar sem um diagnóstico neurodesenvolvimento definitivo no momento da descoberta da seu neoplasia. De facto, embora o autismo possa ser diagnosticado logo aos 2 anos, a maioria das crianças permanece não identificada até depois dos 4 anos (18 anos). Sendo particularmente relevante para o oncologista pediátrico, atendendo a que esta é uma idade em que se observa um pico nos diagnósticos de cancro.



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