A primeira lembrança que tenho da infância é aquela em que estou sentado no chão do pátio e sinto que o sol avança devagar na minha direcção, diz Carlos (nome fictício). Os meus dizem que eu sempre fui um bebé sossegado. Deixavam-me num sitio e eu ali ficava. Nesse dia deve ter acontecido o mesmo, acrescenta. Eu estava na sombra e brincava com a parte de baixo de um carro que se deveria ter desmontado e uma casca de noz, refere. Não sei porquê mas na altura gostava das cascas de noz. A sua pele macia deslizava facilmente sobre as coisas. Nunca gostei de noz e muito menos comi alguma. A sua textura parece no mínimo horrível, refere. Parecia estar distraído. Era algo que acontecia com alguma frequência. Aquilo que passaram a chamar de estar com a cabeça no ar. Ainda que na verdade a minha cabeça estivesse mais frequentemente no chão e não no ar. Demorei algum tempo a perceber a ideia das pessoas, diz Carlos. O sol avançou e começou a tocar na minha perna. Eu não percebi mas sabia que alguma coisa não estava bem. Gritei sem parar. Gritei de tal forma que os meus pais não demoraram muito a aparecer. Eles também não perceberam o que se passou. E isso também acontecia muitas vezes, principalmente no inicio. Só quando a minha mãe me pegou ao colo e me levou para dentro de casa é que eu parei imediatamente de gritar. Ficaram a olhar para mim e sem saber o que me fazer, mas pareciam mais descansados por eu ter parado de gritar, refere. Foi esta a minha primeira lembrança, diz. As pessoas falam muito de coisas que se lembram que fizeram com outras pessoas. Eu lembro-me de sensações, é isso. A luz do sol é insuportável, principalmente no verão e eu não aguento ficar fora por muito tempo ... Eu também não consigo estar nas lojas e quando me obrigam a ir procuro sair o mais rápido possível. A iluminação do tecto é o pior e a fluorescente é insuportável. Por isso compreende porque é que as minhas lembranças são principalmente sensações, certo?, pergunta Carlos. O que quer que eu fizesse tudo era uma sensação. Fosse quando levava alguma coisa à boca. Coisa que deixei de fazer muito rapidamente até porque a segunda experiência mais desagradável que tive foi quando levei uma bolacha à boca e a trinquei. Toda aquela sensação deixou-me de tal forma que senti que ia morrer engasgado, ainda que não o tivesse. Isto foi o que os meus pais me disseram. Mas eu senti que ia morrer naquela mesma altura. E isso ainda hoje está bem presente na minha memória, refere. Nem tudo era desagradável. Percebi que passar as mãos ou outras partes do corpo junto à parede me trazia uma qualquer sensação que as pessoas descreviam como parecendo ser agradável. Eu sei que aquilo que sentia levava-me a querer repetir. Não sei se lhe chamaria propriamente de agradável. As outras pessoas sempre quiseram chamar nomes às coisas. Eu estava mais interessado em as sentir, compreende?, diz Carlos. Outra coisa que sempre me causou algum mal estar foi o estarem muitas pessoas à minha volta. E por isso compreende porque é que durante todo este tempo isso tem sido uma constante, certo? Fosse em casa quando as pessoas iam visitar os meus pais. E depois quando me levaram para o Jardim de Infância e todos aqueles anos na escola. Ou quando saímos para a rua. Sempre pessoas. Sempre muitas pessoas. Quando descobri em geografia que somos quase 11 biliões de pessoas no planeta pensei que isso justificava a minha preocupação. Os meus professores parecem ter ficado assustados quando disse que seria importante que houvesse menos pessoas no planeta. Mandaram chamar os meus pais. Depois percebi que haveria de haver mais coisas que levaram a chamar os meus pais. Eu também parecia gostar. Dessa maneira via mais vezes os meus pais, mesmo na escola. Ainda que olhasse para eles e pareciam não estarem a gostar, mas eu estava. Uma vez chamaram-me de egoista. Eu não liguei. Não sabia o que isso queria dizer. Apenas me lembro que não gostei do tom de voz com que o meu pai o disse, isso sim, percebe?, pergunta-me novamente Carlos. Quando tenho o meu campo visual sobrecarregado isso causa-me maior agitação e instabilidade. Ainda que eu me esforce para me focar em coisas especificas, sempre me pareceu muito difícil de estar a atento a tudo, a todos os movimentos. E se envolver conversa as coisas ficam ainda pior. A minha experiência é semelhante ao estar a ouvir uma estação de rádio e haver uma sobreposição de estações. Percebi isso quando usei o rádio antigo do meu avô uma vez. Senti imediatamente que aquilo era igual ao que sentia quando as pessoas falavam comigo, e principalmente quando estava num grupo e havia mais do que uma pessoa a falar. Por isso, estar a ouvir duas estações de rádio sobrepostas e com todo o ruído ambiente e que na maior parte das vezes é alto, ainda que as outras pessoas digam que está bem para elas, é muito difícil para mim. Sempre foi. O zumbido do ar condicionado, do projector, das luzes, tilintar dos pratos ao pôr a mesa e depois ao arrumar na máquina de lavar e ao tirar para os voltar a arrumar no móvel, um verdadeiro inferno!, desabafa Carlos. Em muitas situações simplesmente desligo, simplesmente desligo!, refere. Os electrodomésticos ligam-se e desligam-se, assim como as pessoas quando acordam e vão dormir. Eu preciso de desligar para sobreviver. E na verdade aprendi a desligar também daquilo que muitas vezes as pessoas me foram ou vão dizendo, confessa. Desde cabeça no ar, a tocarem-me nos ombros ou na cabeça, coisa que odeio, para me chamar a atenção, já aconteceu de tudo. Expliquei algumas vezes a algumas pessoas o que se passava. Algumas perceberam, outras nem por isso. Mas eu precisava de sobreviver, isso era o mais importante. As texturas é um outro mundo, refere! A partir de determinada altura desejei andar nú. Até porque grande parte das roupas me causa desconforto. Passei a ser um especialista em texturas. Procurei ler informação sobre os tecidos e as marcas. No inicio era complicado porque os meus pais é que me compravam a roupa e eles também não sabiam o que fazer. As idas à loja para trocar a roupa passou a ser uma constante. Eu simplesmente não as aguentava no corpo. A sensação era de ter a pele a arder. Mais tarde percebi que o melhor seria ser eu a comprar a roupa ou pelo menos dar indicação de qual a roupa. Qualquer coisa áspera ou crocante é simplesmente impossível. As calças de ganga sempre foi de evitar completamente. Ainda que mais recentemente tenha descoberto que a forma de passar as calças faz com que elas se tornem mais confortáveis. Quanto mais vapor mais as calças ficam macias. Mas ainda assim não vale o trabalho quando simplesmente se pode usar uma coisa mais confortável. E o principio da economia do tempo e da eficiência também sempre foi uma coisa importante para mim. Preciso de me sentir confortável e isso não me parece ser nada de extraordinário visto que sempre ouvi as pessoas dizerem o mesmo em relação às suas próprias roupas. Como tal não percebo o porquê de verem como um problema as minhas hipersensibilidades com determinadas texturas. Os toques sempre foram outra dificuldade. As pessoas parecem não conseguir cumprir o espaço dos outros e tocam nas pessoas por tudo e por nada. Agarram no braço, tocam nas costas, cabeça, mão, enfim, não param de tocar. Mais parecem não verbais, sorri. Não gosto de toques inesperados. Prefiro um toque firme ao de leve. Mas tal como as outras coisas, os toques também dependem muito das pessoas. Em algumas situações até me arrepio quando me tocam. A minha pela arrepia-se e chego a suar. E em algumas situações mais difíceis chego a sentir náuseas. Especialmente se for na pele nua. Por isso consegue compreender porque a minha intimidade é quase impossível, certo?, pergunta retoricamente Carlos. Mas não é a única área onde sinto que a minha existência seja impossível. No trabalho é uma outra situação. Já tive de deixar vários empregos e recusar determinadas situações devido ao facto de ser reactivo a cheiros. A minha aversão a cheiros forte e desagradáveis é tão forte que activa o meu reflexo de vómito, e de apenas querer sair daquele lugar. Já tentei mas não tenho controlo sobre isso. Trocar as fraldas aos meus filhos era um desafio. Se os meus filhos vomitasse, só o cheiro fazia-me vomitar. Tudo na minha vida, seja dentro ou fora de mim são sensações. Se a comida para os meus filhos foi uma dificuldade, para mim nunca o deixou de ser. Apenas gosto de comidas leves e não suporto qualquer tipo de especiaria. Mesmo que as outras pessoas digam que não tem nenhum tempero as comidas são exageradamente intensas no sabor. E nos líquidos a situação não é muito diferente tendo em conta que muitos dos refrigerantes ou são gasificados ou têm um sabor intenso. Mas ainda continuo a gostar de passar a minha mão ou partes do corpo nas paredes. Agora sei fazê-lo de uma forma que as pessoas nem sequer percebem. Não que me importe, mas deixei de querer responder às pessoas o porquê de o fazer, percebe?, refere Carlos. Deixo que a mão deslize suavemente na parede ou então deixo-me ir quase encostado à parede. As paredes quando estão frescas deixam-me sentir algo que parece ser aquilo que muitos dizem como ser reconfortante. Eu não sei se o será mesmo, mas uma coisa é certa, é algo que desejo continuar a repetir.
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