Era uma vez, há não tanto tempo atrás... É mais ou menos assim que todas as fábulas começam. Ainda que muitas não se saiba como acabam. Até porque muitas delas vão sofrendo alterações, aculturações, invenções e outros processos afins. Quem nunca alterou uma fábula para um final mais positivo para que o filho pudesse dormir sem pesadelos? Ou para que a moral da fábula fizesse sentido para algo que tivesse acontecido naquele dia lá por casa?
O senhor corvo numa árvore empoleirado, segurava no seu bico um queijo. A senhora raposa, pelo odor atraída, dirigiu-se-lhe mais ou menos com estas palavras: Olá! bom-dia, senhor corvo, como sois bonito! Como me pareceis belo! Sem mentir, se o vosso gorjeio for semelhante à vossa plumagem, vós sois a fénix dos habitantes destes bosques. Muitos de vocês conhecerão esta introdução à fábula de La Fontaine do Corvo e da Raposa. Não vos irei maçar com o resto da fábula, mas irei tentar conta-la de uma outra forma.
Ao longo destes quase noventa anos de autismo, muitos são os nomes e designações que têm sido criados. Seja porque vai existindo mudanças propostas pelos manuais de diagnóstico (DSM ou ICD). Mas também porque a própria Sociedade vai criando nomes que melhor se possam adequar e ajudar a explica aquilo que pensam sobre a condição ou a pessoa em questão. Por exemplo, ainda recentemente se falava em Autismo de Alto Funcionamento para nos referirmos às pessoas que no espectro do autismo pudessem apresentar determinadas características. Estas pessoas seriam aquelas que apresentariam compromissos na interacção e comunicação social, comportamentos repetitivos e interesses restritos. Mas também apresentariam um perfil cognitivo e intelectual acima da média. Apesar do termo já estar em desuso, ainda são muitas as vezes que se ouve falar de pessoas autistas funcionais. Termo que aviso já não ser muito bem recebido dentro da comunidade autista. E ainda que compreensível a utilização do termo, o certo é que o mesmo esconde outros conceitos mais relacionados com o capacitismo. E capaz ele próprio de gerar uma ideia errada em relação ao que se passa no autismo. Como por exemplo, se a pessoa autista é mais funcional, então isso significa que a pessoa não tem problemas, pensarão alguns. Facto que está todo ele errado e que causa um impacto devastador na vida da pessoa, mas também de todas as outras pessoas autistas.
Mas nem sempre os termos criados se referem às pessoas autistas como mais funcionais. Também tem havido outros termos, tal como autismo profundo, que tem procurado caracterizar o polo oposto dentro do espectro comparado com aquele outro anteriormente referido. O termo autismo profundo não é novo. Contudo, mais recentemente parece ter assumido uma força diferente, principalmente quando uma Comissão especializada no autismo publicou um conjunto de directrizes para uma resposta mais eficaz dentro do autismo no Jornal The Lancet (ver aqui).
O termo autismo profundo deve ser usado para descrever pessoas autistas que necessitam de cuidados permanentes. A orientação faz parte de um conjunto de sugestões para o campo prático para melhorar os cuidados médicos das pessoas autistas e a investigação clínica sobre a circunstância. Outras recomendações incluem uma mudança para a medicina personalizada; serviços de adaptação para países de baixo e médio rendimento; e priorizar o financiamento para projetos de investigação que possam melhorar imediatamente a vida das pessoas autistas.
À partida podemos pensar que estas sugestões parecem ser todas elas importantes e positivas, certo? E são certamente! Confuso? Não fique. Tal como nas fábulas, o entendimento que qualquer um de nós pode ter é diferente dos outros e até mesmo da ideia original de quem escreveu a fábula. Por exemplo, esta mesma Comissão propõem que a investigação realizada no autismo e o financiamento da mesma possa ser repartido entre a investigação fundamental e aplicada. E com isso, a investigação realizada possa surtir efeitos reais e práticos na vida das pessoas autistas. Nomeadamente, os estudos relativamente aos protocolos de intervenção para o autismo ao longo do ciclo de vida são escassos ou inexistentes. O que tem leva à aplicação de protocolos de intervenção adaptados para outras condições psiquiátricas que não o autismo. E entre outros resultados se tem encontrado uma eficácia mais baixa quando se tenta aplicar os mesmos junto das pessoas autistas.
Contudo, a utilização do termo autismo profundo não é neutro. E acaba por ter implicação naquilo que vai sendo a divisão existente e que não é de agora no autismo. Ou seja, fica a ideia de haver um autismo de maior e outro de menor gravidade. E ainda que a gravidade possa ser observada e avaliada para se decidir uma melhor e mais adequada intervenção. Isso também acaba mais uma vez por causar confusão na forma de muitas pessoas compreenderem, ainda que mal, o uso dessa designação no autismo. E também podemos pensar que na própria DSM 5 já existe a utilização da designação nível 1, 2 ou 3, precisamente para que se possa designar a necessidade de apoio e de respostas necessárias para a situação da pessoa autista. E ainda que esteja pressuposto que se a pessoa tem a designação Perturbação do Espectro do Autismo nível 3 é porque terá uma situação clinica mais grave. É preciso também reflectir o impacto que tem quando se subscreve, reforça e massifica a utilização da designação autismo profundo.
Até porque como nas fábulas, as pessoas vão fazendo alterações, aculturações, invenções e outros processos afins. E se em alguns momentos isso vai levando a que o Corvo se sinta lisonjeado e com isso deixe cair o queijo e se sinta defraudado. Também há outras situações em que a profundidade do poço é tão grande que nem deixará ver o reflexo da lua.
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