Entrei na pedopsiquiatria do hospital de santa maria em setembro de 1999. Recordo-me nas primeira semanas de ter perguntado porque cheirava a charuto numa das salas de consulta do piso 0 da ala de psiquiatria! É do psiquiatria disseram-me. Confesso que já não me lembro do nome, mas recordo-me que tinha de abrir a janela antes de começar as consultas. O cheiro era intenso na sua presença, assim como aquilo que vou partilhar. Este mesmo psiquiatra descobri que também tinha formação psicanalítica enquanto psicoterapeuta. Na altura estava a terminar a minha formação em psicologia e confesso que algumas questões ainda não estavam tão entranhadas quanto hoje o estão.
Na faculdade e em especial nas disciplinas mais respeitantes à história da saúde mental recordo-me dos aspectos mais contemporâneos sobre a saída da psicanálise dos hospitais. De uma forma grosseira teria a ver com um movimento mais comportamentalista que se instalava, corria os anos 70 e 80 do século XX. As seguradoras faziam lobbie para que as intervenções pudessem ser de um número especifico. Até para que estas pudessem determinar junto dos seus assegurados e de acordo com a indicação do médico psiquiatra, qual seria as necessidades de intervenção. E se pensarmos naquilo que é o modelo comportamental e cognitivo de 1ª e 2ª geração (CBT) percebemos que os designados pacotes de terapia com um número especifico de sessões determinado à partida parecia ir ao encontro dessa necessidade. Certamente que não eram apenas estas as razões, até porque estamos a falar de saúde mental e de gestão de serviços hospitalares, e isso nunca foi coisa simples. Mas parecia haver a necessidade de capacitar os serviços de saúde mental em contexto hospitalar para dar uma resposta na intervenção psicoterapêutica que pudesse ir ao encontro das necessidades das pessoas, mas também dos recursos existentes. E se a terapia se prolongasse no tempo sem um fim à vista seria muito difícil ou até mesmo impossível de ter recursos humanos, nomeadamente psicólogos clínicos e/ou psicoterapeutas para fornecer essas resposta.
Contudo, se para um certo número de situações e acontecimentos de vida e condições psiquiátricas se poderia antever um inicio e um provável fim de intervenção com a remissão dos sintomas e das queixas possíveis e apresentadas pela pessoa. Também parece ser verdade que em muitas outras condições verificamos que a pessoa necessitará de um acompanhamento mais prolongado no tempo e que não se restrinja aos pacotes de 12 a 16 sessões típicas de se observar na terapia comportamental e cognitiva manualizada. Mas então como fazemos? Como podemos dar uma resposta às pessoas com um diagnóstico de Perturbação da Personalidade? Ou para as pessoas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo? PHDA? Perturbação Obsessivo-Compulsiva? Psicose? Etc...? A questão não será nem simples ou linear, mas precisa de ser pensada!
Os serviços/departamentos de saúde mental, psiquiátricos ou de psicologia há muito que não têm uma resposta de institucionalização ou asilar típica das instituições do século XIX. Mas então como é que estão organizados neste momento para dar uma resposta adequada às reais necessidades dos cidadãos em termos de saúde mental? Terão estes serviços hospitalares uma resposta semelhante ao que os centros de saúde têm em termos de uma resposta ao nível dos cuidados de saúde primários? Em que muitas vezes se ouve dizer que a pessoa está a ser acompanhada no centro de saúde em termos de psicologia com uma regularidade que não parece adequada às suas necessidades? Teremos que dizer aos cidadãos que os centro de saúde e os serviços de saúde mental nos hospitais não servem para fazer psicoterapia? E que essa resposta terá de ser procurada pelos cidadãos num contexto privado?! Como é que se fornece uma resposta psicoterapêutica adequada às pessoas nos actuais serviços de saúde mental?
Os serviços de saúde mental entraram no século XXI com o legado dos grandes hospitais psiquiátricos finalmente a chegar ao fim. Estas instituições, originalmente produtos de uma ideologia filantrópica de tratamento "moral" no século XIX, sobreviveram muito para além do seu prazo de validade. Enquanto se registaram grandes progressos no domínio da saúde física, a saúde mental permaneceu como um lugar negligenciado, muitas vezes referido como um "serviço Cinderela".
O desenvolvimento da psicoterapia também teve lugar durante este período. E seria errado dizer que não teve qualquer influência nos grandes hospitais, mas a influência que teve foi pequena. Os hospitais sempre tiveram uma ética global de tratamento que privilegiava os tratamentos físicos e médicos em detrimento dos psicológicos. A influência da psicoterapia é talvez melhor descrita como uma influência social.
O modelo psicodinâmico, ou psicanalítico, com origem no trabalho de Sigmund Freud, postulava que todas as acções e experiências humanas eram fortemente influenciadas por processos inconscientes, que tinham lugar dentro de uma 'psique' estruturada e dinâmica. Muitos destes modelos psicanalíticos e práticas terapêuticas têm sido criticados nos últimos anos, na medida em que exageram a importância das experiências iniciais de um indivíduo à custa do não reconhecimento da importância dos factores cognitivos e fisiológicos. Outros criticam o trabalho psicanalítico por ser demasiado intensivo e não ser rentável em relação a outras formas de terapia.
As ideias de Freud de que a neurose era uma doença a ser curada foram reinterpretadas pela influência de Carl Rogers através da Escola de Relações Humanas. Rogers não queria patologizar os seus pacientes desta forma. Até porque não considerava as dificuldades emocionais como um indício de doença. Os "pacientes" tornavam-se "clientes" com uma necessidade de serem amados. Quando esta necessidade não era satisfeita de forma adequada, o resultado era confusão e dor. Os seus pontos de vista centravam-se menos nas ferramentas de transferência e contra-transferência e mais nos valores fundamentais de genuinidade, empatia e consideração positiva incondicional.
Se olharmos para a terapia e para os grandes hospitais psiquiátricos nos anos 60, verificamos que a situação era composta por um crescimento e um declínio. A terapia estava certamente a crescer, enquanto os grandes hospitais estavam claramente em declínio. No entanto, a sobreposição entre os dois é mínima. Talvez seja nos serviços de ambulatório ou na clínica do psicólogo que a sobreposição se verifica. No entanto, a grande maioria das pessoas que recorrem a serviços especializados de saúde mental recebem terapia medicamentosa em vez de psicoterapia. E não que a terapia medicamentosa não faça sentido ou não seja necessária. Até porque o é. Ainda que seja fundamental a coadjuvação de ambas as terapias, médica e psicológica. E nessa altura não o estava a ser feito. E ainda hoje não parece ser uma prática comum e recorrente.
A política governamental de encerramento dos grandes hospitais foi anunciada pela primeira vez por volta dessa altura. E foram várias as razões apresentadas para o efeito. Em primeiro lugar, a "Revolução Farmacológica", sugerindo que a degradação dos hospitais se deveu à utilização bem sucedida, por parte dos psiquiatras, de tranquilizantes de grande potência a partir do final da década de 1950. Em segundo lugar, a existência de um "determinismo económico", sugerindo que o encerramento ocorreu para poupar dinheiro, uma vez que os grandes hospitais eram muito dispendiosos de gerir e manter. Em terceiro lugar, verificou-se uma mudança na orientação dos cuidados de saúde, deixando de prestar cuidados institucionais a residentes de longa duração e passando a concentrar-se em intervenções em contextos de cuidados agudos e primários fora das grandes instituições, o que é cada vez mais considerado como não terapêutico. E por último aquilo a que chamam uma "mudança no discurso psiquiátrico". Em que as mudanças no conhecimento psiquiátrico e no objeto de interesse da prática psiquiátrica estavam a evoluir para um novo ecletismo psiquiátrico.
Tem-se argumentado que, embora as grandes instituições tenham fechado gradualmente, as práticas institucionais foram meramente transplantadas para os novos serviços baseados na comunidade. Embora haja alguma verdade nesta afirmação, o próprio facto de os serviços terem saído para a comunidade levou a uma pequena diminuição do poder de um modelo de cuidados dominado pela medicina. Os doentes passaram gradualmente a ser designados por clientes e depois por utentes dos serviços, à medida que entravam em contacto com profissionais de saúde mental cuja formação e experiência se baseavam mais num modelo humanista Rogeriano.
A década de 1980 assistiu ao nascimento do que tem sido descrito como o "movimento dos utilizadores dos serviços". Foram sendo vários os movimentos que foram acontecendo nos vários países e que se foram mutuamente influenciando. Por exemplo, encorajados e apoiados pelos Conselhos de Doentes holandeses, pelos Serviços de Advocacia e pela Organização de Utentes, bem como por Judi Chamberlin e o seu livro "On Our Own" em 1977, os utentes dos serviços passaram a ter uma influência crescente desde essa altura. Em particular, sinto que foram muitas vezes responsáveis por manter na ordem do dia perspectivas alternativas sobre o sofrimento mental durante uma década em que a árvore do diagnóstico psiquiátrico e da medicação cresceu tanto que parecia cortar a luz a quaisquer outras perspectivas.
Nos anos 90, o trabalho de dois psiquiatras holandeses, Romme e Escher, levou ao crescimento da rede "Hearing Voices". Este trabalho, que tem como base a compreensão da psicose, permitiu aos utilizadores dos serviços e aos profissionais de saúde mental serem mais activos e assumirem o controlo. O modelo é uma abordagem de autoajuda para os estes clientes, que tem três fases: reconhecimento, aceitação e compreensão, lidar/viver com as vozes. A ligação com a psicoterapia é clara. Muitos outros programas de autoajuda e de auto-gestão foram posteriormente criados. A força destas abordagens reside no facto de terem surgido dos próprios utentes e clientes, com a ajuda de profissionais de saúde mental.
No início da década de 2000, começava a ser pensada e sentida que a psicologia estava a mobilizar as suas forças no início de um novo século para uma batalha contra a psiquiatria. Inclusive passou a ser questionado a própria base do sistema de classificação psiquiátrica, expondo a falta de rigor científico em áreas tão cruciais como o diagnóstico e o tratamento. Sendo inclusive lançado um ataque total à versão de 943 páginas do Manual de Diagnóstico e Estatística, DSM-1V-TR.
No início do século XXI, olhamos para trás e pensamos, pelo menos alguns de nós, que o século XX trouxe a revelação de Freud da verdadeira dinâmica da psique. Para outros, a psicanálise revelou-se um interlúdio estéril, antes de a compreensão neurofisiológica e neuroquímica do cérebro ter finalmente avançado e dado frutos em medicamentos eficazes. Os desenvolvimentos psicofarmacêuticos permitem certamente que a própria psiquiatria funcione melhor, mas pacificar os pacientes com medicamentos não parece ser o auge da realização e quaisquer reivindicações quanto à maturidade de uma ciência das perturbações mentais parecem prematuras e contestáveis - veja-se as idas e vindas em massa das classificações do Manual de Diagnóstico e Estatística.
Parece evidente que a neurociência ainda não conseguiu dar resposta, e as críticas à psiquiatria, tanto de fora como de dentro das suas fileiras, associadas a uma voz crescente dos utilizadores/clientes dos serviços, colocando os serviços de talking therapy no centro das atenções. Os utentes dos serviços, quando consultados, pedem sistematicamente menos dependência da medicação e mais acesso a tratamentos de psicoterapia.
O ênfase nos pontos fortes do cliente aponta para um afastamento de uma abordagem "patologizante" que tem sido vista como conduzindo a um sentimento de desespero nos serviços de saúde mental. Ou então a abordagem no Recovery também está no centro dos serviços modernos de saúde mental. Ao ponto de ser pensado que nos serviços de saúde mental estamos habituados a pensar na experiência das pessoas em termos dos apoios e intervenções que os profissionais de saúde mental fornecem. Pensamos em termos de instalações de internamento, serviços de proximidade, medicação, terapia ocupacional, terapia artística e 'intervenções psicossociais'. Pensamos na redução dos sintomas e na alta como índices de sucesso. E este parece ser um ponto de partida errado. Todas as pessoas que sofrem de problemas de saúde mental enfrentam o desafio da recuperação, ou seja, da reconstrução de uma vida com significado e valor. Quer os problemas de uma pessoa sejam limitados no tempo ou contínuos, quer os seus sintomas possam ou não ser eliminados, essa pessoa enfrenta a tarefa de viver com o que lhe aconteceu e de ultrapassar essa situação. E a ajuda oferecida pelos profissionais de saúde mental deve ser considerada em termos da medida em que facilitam ou dificultam este processo de recuperação.
Contudo, a Recovery não é o mesmo que cura. Não significa necessariamente que todo o sofrimento ou sintomas tenham desaparecido. Trata-se de crescimento e não se refere a um produto final ou a um resultado. Pode ocorrer, e ocorre, sem intervenção profissional. Um dos principais pontos fortes da recuperação é o facto de a sua visão não estar limitada a uma teoria específica sobre a natureza e as causas dos problemas de saúde mental. Desta forma, a agenda pode ser mais facilmente definida pelo cliente ou utilizador do serviço. A recuperação não é, obviamente, específica das pessoas com problemas de saúde mental. A recuperação consiste em retomar o controlo da própria vida. A recuperação não é um processo linear - a recaída não é um "fracasso", mas faz parte do processo de recuperação. Isto é útil, uma vez que os serviços de saúde mental pensaram durante demasiado tempo na hospitalização como um fracasso e não como uma parte importante do tratamento quando necessário. O percurso de recuperação de cada pessoa é diferente e profundamente pessoal. Não existem regras para a recuperação, nem uma fórmula para o sucesso.
Os utilizadores dos serviços, quando consultados, pedem sistematicamente para serem respeitados e para que alguém os ouça. Querem também ter mais acesso à psicoterapia. Outro factor chave que também emergiu da investigação conduzida pelos utilizadores dos serviços é a importância da espiritualidade e da religião para os utilizadores dos serviços de saúde mental. Considera-se que a espiritualidade foi ignorada ou suprimida no passado, sendo as formas de religião e crença por vezes vistas como parte da doença. Esta situação coloca oportunidades e desafios à psicoterapia. Há muitos mais clientes potenciais. Mas estes são clientes que podem ter sido excluídos da terapia no passado. Também se pode colocar a questão: Que formas de tratamento/psicoterapia são mais adequadas a esta idade?
Até à data, a psicoterapia e o aconselhamento têm tido pouco impacto na saúde mental geral. Ou seja, temos a evidência dos trabalhos científicos que nos demonstram a eficácia da intervenção psicoterapêutica nas dificuldades e nas necessidades trazidas pelas pessoas. Mas depois verificamos que a realidade na saúde mental continua marcadamente negativa. E em alguns aspectos verifica-se um aumento das situações. E talvez possamos pensar se a forma como a resposta dada a nível hospitalar no campo da saúde mental e na intervenção dos psicólogos clínicos e na psicoterapia em termos específicos possa necessitar de ser pensada e trazida de forma diferente para este contexto.
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