Ainda não tenho idade para ter rugas! diz Sandra (nome fictício). Mas tenho medo de olhar para dentro de mim. Devo estar completamente destruída! acrescenta. O mês passado ainda tentei contar à minha mãe sobre os meus traumas, mas foi o mesmo que nada! desabafa. Disse que eram caprichos! E ainda acrescentou que eu não sabia o que eram traumas e que devia ter vergonha em dizer uma coisa dessas! refere. Fiquei tão chocada que não disse mais nada a ninguém. Talvez ela tenha razão. Talvez eu não saiba o que são traumas. E tendo em conta todas estas guerras no mundo, a fome e outras catástrofes, talvez eu seja mesmo egoísta! conclui em grande sofrimento.
A Sandra tem 17 anos, acabados de fazer. Não parece nada. É uma adolescente de baixa estatura e com baixo peso. Quando se olha para ela parece uma pré adolescente de 12 anos. Foi-lhe diagnosticado uma depressão aos 8 anos. Mas as suas queixas já vinham mais de trás. Ninguém me queria diagnosticar! partilhou. E quando entrou para o 5º ano as dificuldades relacionais acentuaram-se e as questões depressivas agravaram-se e foi hospitalizada durante duas semanas em pedopsiquiatria. Apresentava evidência de ideação suicida. Os pais não sabiam de nada, mas a Sandra confessou que há muito que já pensava nisso. Eu sabia que eles iam ficar chocados ou zangados até! desabafou. Neste período foi avaliada em contexto hospitalar e diagnosticaram-lhe uma Perturbação do Espectro do Autismo. Os pais não gostaram nada. Mas a explicação que deram à Sandra fez-lhe muito sentido. Agora compreendo o meu sofrimento! disse. Não o deixo ainda assim de ter, mas já o compreendo! acrescenta.
A interaçcão com as pessoas sempre foi um desafio para a Sandra, assim como para todas as pessoas dentro do espectro do autismo. Seja o conhecer pessoas novas, experimentar situações inesperadas, sujeitar-se a situações desagradáveis para si, não saber como fazer conversa, seja esta circunstancial ou não, ouvir coisas que não são do seu interesse, estar sujeita a um tempo de interacção que excede o seu limite, ruido, a própria tonalidade da voz da outra pessoa, etc. Como se vê, só na interacção social, as situações a que a pessoa autista está sujeita podem ser infinitas e na grande maioria causadoras de mal estar e de uma forma continuada até mesmo traumática. Ao ponto inclusive da própria antecipação da situação ser causadora de mal estar, nomeadamente de ansiedade. E se pensarmos, desde cedo que a pessoa está em contacto com vários pessoas e sistemas ao longo da vida. Seja na escola, mais tarde tarde na faculdade, em muitas outras situações extra-curriculares, no trabalho e família. Seja onde for, são contextos onde muitas das regras e normas são diferentes de muitas das suas próprias, e onde as pessoas são em grande parte pouco compreensivas com a diferença. E é nesse sentido que penso que as situações sociais do quotidiano se podem tornar traumáticas para a pessoa autista.
E não é por acaso que tem sido sugerido que as pessoas autistas podem ser mais susceptíveis a reacções de stress traumático devido a dificuldades na compreensão da linguagem, processamento de informação, défices de regulação emocional e uma e uma maior taxa de isolamento social. E alternativamente, tem sido referido que as pessoas autistas podem ser menos susceptíveis a sintomas de stress traumático devido a diferenças na percepção social, consciência e dificuldades em descrever experiências emocionais, que resultam em capacidades limitadas para interpretar e percepcionar com precisão um evento como traumático.
Sendo que um acontecimento traumático é entendido como um evento que é vivenciado como ameaçador para um indivíduo e que tem efeitos imediatos e/ou prolongados no funcionamento de um indivíduo no seu ambiente e relações. É importante notar que os indivíduos podem ter percepções e reacções diferentes ao mesmo acontecimento, o que pode fazer com que um indivíduo experimente o acontecimento como traumático, mas não o outro. Embora os sintomas de perturbação de stress pós-traumático (PTSD) sejam critérios de inclusão ou rubricas para a avaliação do trauma para a avaliação do trauma em estudos de investigação, nem todos os indivíduos que sofrem de stress traumático preenchem todos os critérios para para a perturbação.
Por sua vez, o trauma social enquanto categoria clínica, define um grupo de perturbações pós-traumáticas causadas por violência social organizada ou genocídio, em que um grupo social é alvo de perseguição planeada e, por conseguinte, não só o indivíduo mas também o seu ambiente social são afectados. Por conseguinte, o conceito de trauma social também descreve a sombra do trauma original nos processos sociais a longo prazo, seja a nível familiar, grupal ou intergrupal.
E apesar de todo o progresso da civilização e da tecnologia, a violência colectiva tem ressurgido repetidamente ao longo da história, afectando grandes grupos sociais e deixando cicatrizes traumáticas não só na vida mental dos sobreviventes individuais, mas também nas memórias colectivas dos grupos envolvidos. O trauma social influencia a identidade do grupo; molda os processos de adaptação individuais e colectivos, bem como a transmissão transgeracional. As sequelas da violência dirigida a grupos inteiros podem incluir sintomas psicopatológicos, tanto nas vítimas como nos agressores, que diferem substancialmente dos sintomas traumáticos gerais, mas especificamente estas experiências sociotraumáticas afectam também ambientes sociais inteiros. Assim, os traumas sociais devem ser compreendidas e tratadas num quadro conceptual mais amplo, ligando a psicologia clínica e a psiquiatria a todos os aspectos sociais.
Quase dois terços das crianças e adolescentes são expostos a pelo menos um acontecimento traumático antes de atingir a idade adulta, o que eleva o seu risco para uma vasta gama de desafios ao longo da vida, incluindo perturbações psiquiátricas que afectam o humor, o comportamento e o desenvolvimento. E se por um lado o impacto do trauma e o trauma em si têm sido estudados nas perturbações de ansiedade e do humor, o mesmo já não se verifica na Perturbação do Espectro do Autismo. O que não deixa de ser curioso (no mínimo), tendo em conta o número de acontecimentos traumáticos ao longo de toda a vida da pessoa autista. Ao ponto inclusive de hoje em dia se falar cada vez mais da intersecção entre a Perturbação de Stress Pós Traumático e a Perturbação do Espectro do Autismo.
E como tal, não existem estudos empíricos sobre trauma e perturbação de stress pós-traumático (PTSD) em pessoas autistas, apesar de haver indicações de um risco acrescido de exposição a acontecimentos potencialmente traumáticos nesta população. A investigação sobre o tratamento da psicopatologia do stress traumático no autismo é ainda mais limitada e sugere e sugere uma necessidade crítica de orientação na área das adaptações de tratamento específicas nas pessoas autistas.
Uma coisa vai parecendo cada vez mais evidente. As vivências sociais quando sentidas/percepcionadas pela pessoa como negativas/ameaçadoras/inseguras. E serem continuadas ao longo do tempo, sem que a pessoa consiga ter uma compreensão das mesmas, além de sentir que não tem capacidade de resposta para impedir e/ou travar as situações. Levará certamente a que estas mesmas experiências sejam vivenciadas como traumáticas e guardadas na enquanto memória igualmente traumática que acaba por ser mais rapidamente acedida por todo um conjunto de gatilhos que vão continuando a existir no contexto envolvente. E não tirando o impacto a experiências traumáticas de maior impacto, o certo é que estes traumas sociais parecem ocorrer em maior frequência na vida quotidiana das pessoas. E esse facto parece traduzir-se numa sensação de impotência face aos acontecimentos. Assim como a própria resiliência que se vê enfraquecida e a noção de esperança no futuro que esmorece. Não deixando de importar o impacto gigantesco que têm no perpetuar dos sintomas de ansiedade e depressão.
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