Trauma (trau.ma)
nome masculino
1. Lesão local proveniente de um agente vulnerante.
2. Agressão ou experiência psicológica muito violenta.
Origem etimológica: grego (traûma), -atos, ferida, dano, avaria.
Nunca cheguei a tirar o casaco dali ! Mesmo quando mudei de casa não consegui ! Alguém o haveria de fazer ! disse Alzira (nome fictício), mãe da Joana (nome fictício), que morreu num acidente de viação aos 17 anos quando ia no carro com os pais de um amigo porque a sua mãe não tinha conseguido levá-la à festa.
Lembro-me quando no 3º ano da Faculdade dei a Perturbação de Stress Pós-Traumático na disciplina de Psicopatologia Geral. Foram enumerados um conjunto de critérios e características, tal como uma definição de dicionário, ainda que mais elaborada. Estávamos em 1997. Foi há 26 anos. Na altura a memória da Guerra Colonial no Ultramar ainda estava bastante presente. Até porque havia bastantes antigos combatente vivos. Assim como as suas esposas e os filhos. Entretanto foi havendo outras guerras, umas mais perto do que outras. Outras mais próximas, até porque a televisão e as redes sociais nos trazem o palco de guerra para junto de nós numa experiência cada vez mais imersiva. Na altura já sabia que o trauma não era apenas a guerra. Havia a fome, a pobreza extrema, o desemprego e outros flagelos sociais que nas décadas de 70 e 80, mas não só, estiveram presentes. A violência doméstica era uma realidade desmascarada. A mortalidade infantil ainda se combatia de forma musculada para travar os indicadores de saúde. O abandono escolar precoce era uma realidade mais do que um fenómeno a compreender. Fui construindo a ideia de que para além da Perturbação de Stress Pós-Traumático deveria haver uma outra "perturbação" de traumas quotidianos. Daqueles que ainda que em menor intensidade, mal comparados, com determinados acontecimentos na vida das pessoas, estavam mais frequentemente presentes na vida das pessoas, corroendo a resiliência e a esperança. E agora após estes anos todos encontro as pessoas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. E nelas descubro um amontoado de traumas e de razões para esperar os traumas acontecerem. E fico a pensar quantas destas situações não serão elas também uma Perturbação de Stress Pós-Traumático.
E depois ouço, Sabes o que acontece quando a Perturbação do Espectro do Autismo se cruza com a Perturbação de Stress Pós-Traumático? Eu!, diz Catarina (nome fictício), mulher de trinta e seis anos com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo feito há quatro anos atrás. Eu sou esta relação simbiótica em que os sintomas da PTSD é reforçada pelas características do autismo e criam esta frente de ar quente e frio que não me deixa mais nada a não ser sofrer! diz.
As pessoas autistas vivem num mundo que lhes cria elevados níveis elevados de stress e ansiedade. Sentem-se confusas e sobrecarregadas por experiências sociais e sensoriais, e têm dificuldades consideráveis em aceder, regular e comunicar as suas emoções. A sua história de desenvolvimento pode também incluir ser rejeitado e maltratado pelos colegas desde a primeira infância (e.g., bullying), levando a um sentimento de solidão e depressão. Na idade adulta, a pessoa pode ficar muito stressada por não obter sucesso académico, relacional e laboral que seria de esperar, tendo em conta as suas capacidades intelectuais; e muitas vezes há uma continuação de experiências que são percepcionadas como traumatizantes.
Os elevados níveis de stress e ansiedade podem tornar a pessoa excessivamente sensível e reactiva a acontecimentos aversivos, causando hipervigilância, baixa resiliência e uma amplificação da profundidade da resposta emocional. O nível de trauma emocional e de stress devido a experiências específicas e muitas vezes repetidas pode pode levar ao diagnóstico de Perturbação de Stress Pós-traumático (PTSD).
A própria forma como as experiências traumáticas são vivenciadas pelas pessoas autistas, atendendo a que estas apresentam determinados enviesamentos no processamento da informação, pode levar a que estas experiências fiquem registadas de forma ainda mais marcada, favorecendo o desenvolvimento de crenças desadaptativas e geradoras de grande ansiedade.
Os flashbacks da PTSD são despoletados e experimentados repetidamente e experimentados vezes sem conta por um par de características que definem o autismo-
perseveração e ruminação. Os pesadelos com PTSD tornam-se mais lúcidos devido a um cérebro autista que pensa em imagens. As emoções invocadas pelo reviver do trauma durante os flashbacks podem criar o caos numa pessoa autista que não está em contacto com e/ou não compreende as suas emoções. As emoções fortes podem tornar-se rapidamente avassaladoras. E não saber como lidar com as suas emoções (e.g., Alexitimia) pode causar um colapso autista deixando a pessoa autista em crise (e.g., meltdowns). Os ataques de pânico da PTSD são exacerbados pela ansiedade sempre presente com que as pessoas autistas já vivem e aprofundam a depressão que muitas pessoas autistas sofrem dia após dia.
Seja na avaliação e diagnóstico das pessoas autistas, mas também no próprio processo de acompanhamento médico e psicológico, o trauma, a vivência destas experiências, o rememorar e revivenciar, e o próprio (re)significar das mesmas é fundamental estarem presentes em todos os momentos.
Comments