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Foto do escritorpedrorodrigues

Traum.atos

Trauma, tramatos, traumatismos, que significa ferida, dano ou avaria, lia no dicionário. Comecei a ler dicionários muito cedo. Talvez primeiro que qualquer outra coisa. Porquê? Por uma razão simples, é lá que se encontra a explicação das palavras. E para ler e compreender os outros livros será preciso ler o dicionário em primeiro lugar. Em tudo na vida há coisas que acontecem ou têm de acontecer para que outras sejam possíveis. Ainda que nem sempre isso aconteça de uma forma racional, lógica ou expectável.


Li pela primeira vez a palavra trauma no dicionário quando estava a dois meses de fazer seis anos. Não sei porquê. Naquela altura abria o dicionário sem uma ordem especifica e lia o que estava nas duas folhas visíveis. Mais tarde passei a dar uma ordem lógica à leitura. Mas naquela altura as coisas aconteciam de forma mais descoordenada, desorganizada, desregulada. Mas naquele dia fiquei a saber o que eu era - uma ferida. Isso mesmo. Eu era uma ferida. Ou melhor, um conjunto de feridas, de traumas ou melhor de traumatos. O meu primo mais velho às vezes dizia em jeito de pergunta e de gozo se eu estava avariado! Depois percebi o que ele queria dizer. Mas na altura antes de ter lido a palavra trauma no dicionário zangava-me com ele quando me dizia aquilo. Não sei porquê, mas parecia-me uma coisa negativa. Nesse dia que li a palavra trauma no dicionário também percebi que o meu primo seria um agente externo. Isto porque no dicionário dizia que o trauma é uma lesão provocada por agente externo.


Descobri mais cedo do que quem eu próprio sou que sou uma ferida. Foi assim que me fui conhecendo, de ferida em ferida, de trauma em trauma. Descobri os meus limites, da dor ou da tolerância quando ainda nem tinha cinco anos e me fartava de cair. Ou então quando ainda com três anos e não tolerava estar ao colo das pessoas. Não quero, não quero, dizia eu de forma ainda pouco ou na perceptível naquela altura. Mas as pessoas insistiam em me pegar ao colo e me esborracharem contra o seu corpo. Ou ainda pior quando punham os seus lábios encostados na minha pele. Eu chorava. Eles não percebiam. Até porque continuavam a fazer ainda mais e pior. Por isso eu aprendi a deixar de chorar. O que fez de mim uma ferida silenciosa. Isso mesmo, uma ferida silenciosa. Até porque há as feridas que nos fazem gritar, chorar e pedir por ajuda. E depois há estas em que ficamos em silêncio. Foi provavelmente uma das minhas primeiras importantes aprendizagens. Se eu deixasse de fazer determinada coisa as outras pessoas também respondiam ou correspondiam a esse meu comportamento. E como as pessoas não percebiam, senti que tinha de ser eu a perceber e a faze-los perceber. Mas nem tudo foi assim tão fácil. Em criança e durante boa parte da minha juventude houve muita coisa que me obrigaram a fazer. Porquê? Porque não percebiam que eu não gostava daquilo. Muito pelo contrário, odiava, enojava-me, arrepiava-me. E por que é que não dizia nada? Mas eu dizia. Mas também foi uma aprendizagem que fiz muito cedo, de que quando dizemos coisas que as outras pessoas não pensam daquela mesma forma ou não concordam, simplesmente não aceitam o que dizemos. E por isso aprendi a não dizer nada que se pudesse encaixar nesta situação. Porquê? Porque me cansava, esgotava, drenava. E eu precisava de energia, até para poder aguentar as feridas.


Quando vinham com o creme para me por no corpo ou o prato cheio de comida. Todas as situações da minha vida até bastante recentemente eram feridas. Tomar banho era um afogar das feridas. Um sufoco. Sentia-me a morrer todos os dias. Até porque me obrigavam a tomar banho todos os dias. Mas aprendi que consigo suster a minha respiração durante bastante tempo. Até porque lavar o cabelo, coisa que ainda hoje odeio, levava mais tempo que tudo o resto. Até porque era franzino e o corpo tinha pouco para lavar. Até porque eu estava sempre imaculado. Porque não gostava de me sujar. Até porque só de pensar que depois tinha de tomar banho e ser esfregado era algo que me aterrorizava. E por isso também não ia brincar mesmo quando as outras crianças me pediam para eu ir. Uma vez disse a uma que não ia porque tinha medo de tomar banho. Ela disse que também não gostava. Eu não percebi porque é que se ela não gostava ainda assim ia brincar e sujar-se. E como depois não conseguia deixar de pensar naquilo durante bastante tempo, também aprendi a não dizer as coisas às pessoas porque depois elas diziam-me coisas que eu ficava sem conseguir deixar de pensar.


Fazer coisas sem que percebe o porquê delas sempre foi e continua a ser um tormento. E quando entrei na escola percebi que toda aquela viagem iria ser um tormento só. Um amontoado de feridas. Não percebi porque é que tinha de estar sentado quando a professora podia estar em pé. Ou porque é que não podia fazer perguntas se a escola era o sitio para aprender. E quando tentava fazer um esforço para compreender, e acreditem que o fiz, logo havia novo exemplo a mostrar-me a incongruência das pessoas. E mesmo quando sabia as coisas obrigavam-me a repeti-las. E se não o fizessem mandavam trabalho para casa a repetir ainda mais as coisas que não tinha feito. E os outros colegas apesar de não gostarem quando isso acontecia com eles, ainda assim me gozavam. E eu não percebia porque é que o faziam quando não gostavam que isso acontecesse consigo.


E ainda por cima lembro-me de tudo. Mesmo agora após quase sessenta e dois anos de vida ainda me lembro de tudo desde os meus três anos. E por isso as minhas feridas nunca sararam. Eu sou uma ferida aberta. Uma fractura exposta. E todos sabem que as feridas abertas e que não fecham têm maior probabilidade de infectar e de ficar pior. E foi isso que aconteceu. As minhas feridas foram ficando pior e eu também. E aos cinquenta e três disseram-me que afinal eu sou autista. Ao longo destes últimos quase nove anos tenho procurado desinfectar as minhas feridas. Ainda bem que eu eu sei onde é que elas estão e como elas aconteceram. O meu psicólogo garantiu-me que as minhas feridas não vão desaparecer. Apenas vão ficar diferentes. Eu fiz questão delas não desaparecerem, até porque eu não quero desaparecer. Apenas quero ser diferente.


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