Quantos de nós não ouvimos já esta pergunta? E quantos de nós não nos insurgimos contra ou a favor dela? Mas afinal do que trata esta questão? Antes de avançarmos, penso que seja importante pensar num método de pensamento sistémico, provavelmente conhecido de muitos, formulado na seguinte questão - Quando analisa um problema costuma ver uma árvore ou a floresta? Depende, responderão muitos de vocês. Quando penso nesta pergunta e procuro aplica-la a mim próprio, tendencialmente respondo, ambas. Vejo a árvore mas também a floresta. Ou então, vejo a floresta primeiro e depois a árvore. E assim sucessivamente até ter uma melhor compreensão do fenómeno a analisar. E este, de se somos todos um bocadinho autistas, é um desses fenómenos que necessita de uma análise cuidadosa e que nos leva necessariamente a ter diferentes perspectivas sobre as coisas. Esta questão é tão vasta e fundamental que se prende com a questão de se o autismo enquanto condição do neurodesenvolvimento deve ser vista como categorial ou dimensional.
Ainda nos dias de hoje ouvimos frequentemente, e em vários contextos, informais e formais, afirmações tais como, parece que, pelo menos ao nível comportamental, podemos ser um pouco autista. E embora devamos ter em mente que o mesmo comportamento pode ter diferentes fundamentos, parece que, pelo menos ao nível comportamental, podemos ser um pouco autista. Assim como, também ao nível genético, parece que as influências genéticas nos traços subclínicos sobrepõem-se amplamente com aqueles com diagnóstico de autismo.
Não deixo de compreender aquilo que preocupa várias pessoas. A mim também me preocupa, nomeadamente o facto das pessoas passarem a normalizar muitos dos comportamentos observados no Espectro do Autismo. E com isso poder haver uma desvalorização dos comportamentos e subsequentemente um decréscimo no número de diagnósticos. Mas também o seu inverso, havendo um aumento exponencial de diagnósticos e uma subsequente descaracterização daquilo que é o autismo. Mas não só. Há vários outros aspectos que se prendem com a compreensão a um nível biológico, cognitivo e comportamental daquilo que é o autismo.
Na avaliação e acompanhamento de pessoas autistas adultas, são muitas as vezes que me deparo com adultos, homens e mulheres, que nunca foram diagnosticados com Perturbação do Espectro do Autismo. Mas que também já foram diagnosticados com outros diagnósticos psiquiátricos. É sabido que no Espectro do Autismo há uma maior propensão para o desenvolvimento de outros diagnósticos e isso na prática traduz-se na apresentação de um quadro muito mais complexo que o habitual na clinica. Depois também há outros casos que apesar de terem sido diagnosticados correctamente com Perturbação do Espectro do Autismo em determinado momento da sua vida. O certo é que a evolução do caso clínico ao longo do tempo aproxima-se frequentemente daquilo que está compreendido numa Perturbação da Personalidade. Por exemplo, no caso das mulheres, é frequente termos um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e de uma Perturbação da Personalidade Borderline, seja em comorbilidade, mas também como um contínuo. Sem dúvida que estes e outros desafios nos devem fazer pensar no que é o Autismo, principalmente no Autismo para lá da DSM. Ainda que a ligação entre estes dois, autismo e DSM, seja estreita.
Sem não olhássemos para trás, podiamos imaginar que autismo sempre foi conceptualizado tal como é hoje. Uma condição de neurodesenvolvimento crónica com um espectro de manifestações e com probabilidade alta de co-ocorrência de perturbações neuropsiquiátricas. Mas no entanto, e olhando para as últimas décadas de investigação sobre autismo, os dados revelam reconceptualizações dramáticas com implicações a longo prazo e alcance, tanto a nível teórico como prático.
Na década de 1980, quando a investigação psicológica começou a intensificar, o conceito de autismo era muito mais restrito do que as noções actuais. Por exemplo, a 3ª edição da DSM (DSM-III; APA, 1980), que incluiu a designação ‘Autismo infantil’ como um diagnóstico separado pela primeira vez, listado como um dos seis critérios, 'falta de capacidade de resposta a outras pessoas '. Em contraste o critério equivalente para Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) na última edição do DSM-5 (APA, 2013), refere ‘Déficits persistentes na comunicação social e social interação em vários contextos. . . ’. A este nível podemos verificar que há um conjunto amplo de formas de podermos olhar para o autismo. Por exemplo, Lorna Wing, um investigadora sobejamente conhecida nesta área, refere-se ao autismo como tendo uma tipologia social caracterizado de indiferente, passivo e activo mas estranho e que pode ser visto como uma tentativa inicial de superar a falta de capacidade de resposta às dificuldades sociais que variaram amplamente nas manifestação. No entanto, e apesar de todo este esforço de alargar o fenótipo comportamental observado no Espectro do Autismo, a percepção permaneceu na década de 1980, de que uma criança que era, por exemplo, excessivamente amigável, não poderia ser autista. Curiosamente, ainda hoje continuamos a verificar este tipo de afirmações, nomeadamente por parte de clínicos, professores e pais.
Mais dois dos seis critérios diagnósticos do DSM-III para Autismo infantil eram "déficits graves no desenvolvimento da linguagem e se a fala está presente, verificar a existência de padrões da fala peculiares, como ecolália imediata, linguagem metafórica, inversão do pronome. Aqui podemos verificar o foco existente na linguagem ao invés da comunicação, e a expectativa de que muitas crianças autistas não mostrariam nenhum discurso. A Perturbação da linguagem foi visto tão central para o autismo, e talvez até explicativo pela dificuldade em se relacionar com as pessoas e objectos de uma forma usual.
No que diz respeito aos diferentes níveis de explicação do autismo: biológico, cognitivo e comportamental. Ao nível biológico, os mesmos factores genéticos que parecem influenciar o autismo, também aparecem com variação semelhante nos traços relevantes para o autismo na população em geral. Facto que apoia uma aproximação à posição dimensional. Na verdade, o fenótipo alargado do autismo foi cunhado por reconhecer que os parentes de pessoas autistas mostram mais traços relevantes para o autismo do que é típico do estado da população em geral. Podemos pensar que decorrente da investigação biológica até ao momento, de que as técnicas disponíveis não oferecem, ainda, uma oferta confiável de evidências de diferenças qualitativas na estrutura do cérebro, ou de diferenças qualitativas bem replicadas na função cerebral no autismo. Portanto, embora possa ser verdade, com base nas evidências actuais, é difícil apoiar a afirmação de que as pessoas autistas partilham um perfil neurológico.
Ao nível cognitivo, existem diferenças qualitativas (e.g., mentalização automática) e diferenças quantitativas (e.g., coerência central) entre autismo e não autismo. A esse respeito parece haver um maior consenso de que aquilo que define o autismo é uma forma diferente de processamento do Mundo.
Ao nível comportamental, o mesmo comportamento pode ter diferentes causas e diferentes fundamentos cognitivos. Por este motivo, pode ser duvidoso, principalmente quando usamos medidas de auto relato de traços autistas e se estes, que mostram uma dimensão da distribuição de tais características comportamentais na população em geral, medir algo qualitativamente semelhante ao autismo.
A pergunta interessante a fazer é, O que convenceria alguém a qualquer um desses caminhos? Como psicólogos cognitivos, estaríamos convencidos se aquelas características cognitivas, qualitativa e quantitativamente distintas do autismo mostram uma forte associação com o comportamento (normalmente avaliado através de questionário), medidas de traços de autismo. Ao nível biológico, os investigadores podem ser ainda mais persuadidos pela genética ou as evidências da neuroimagem para a validade das medidas de traços do autismo. Infelizmente, o nível comportamental é onde o diagnóstico de autismo - como de muitas outras condições (por exemplo, PHDA) - reside actualmente. Gostaríamos que os testes cognitivos fossem capaz de identificar com segurança o autismo na clínica. Alguns testes desenvolvidos em laboratório são usados em clínicas de diagnóstico para adicionar informações sobre o estilo de processamento ou pontos fortes e fracos, mas nenhum médico actualmente confiaria exclusivamente nos testes cognitivos para esse efeito. Depender, em vez disso, do comportamento observado e da história do desenvolvimento é imperfeito, mas isso é tudo o que o clínico tem para trabalhar. O bons clínicos tentarão ver uma criança em ambientes variados (e.g., recreio escolar), e irá pergunte a um adulto como ele experimenta os diferentes contextos e o que lhe custa ter de lidar socialmente com eles.
Mas em relação à pergunta, O autismo é qualitativa ou quantitativamente distinto do não autismo? A pergunta confirma a nossa crença de que precisamos para distinguir o biológico, cognitivo e comportamental, ter níveis de descrição, explicação e investigação empírica. Portanto, não pode haver uma resposta única.
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