Não, não é nenhum engano ou manipulação de imagem. A mão tem seis dedos. E não, não vou falar de Polidactilia ou outras Anomalias ou Síndromes Genéticas. As minhas colegas Ana Catarina Fonseca e Ana Paris são quem melhor está qualificado para o fazer.
Mas se pensam que ter seis dedos na mão é uma questão impactante, digo-vos que falar de como abordar a crise da saúde mental no autismo não é menos. E não, não pensem que irei falar da crise de saúde mental derivado da situação pandémica devido à COVID-19. Já várias vezes tenho escrito que a crise da saúde mental no autismo existe desde há muito.
A crise de saúde mental do autismo pode ser descrita com o seguinte paradoxo: as pessoas autistas têm uma maior probabilidade de desenvolver problemas de saúde mental, mas uma baixa probabilidade de receber ajuda efectiva. Estava à espera de algo mais elaborado? Infelizmente não tenho. E a realidade muitas das vezes sobrepõem-se a tudo o resto.
Em 2008, um artigo do Simonnoff e colaboradores, designado Psychiatric Disorders in Children With Autism Spectrum Disorders: Prevalence, Comorbidity, and Associated Factors in a Population-Derived Sample, reportava todo um conjunto de indicadores preocupantes, chocantes, relevantes e suficientemente bem fundamentados para serem desacreditados. E depois de os lerem pensem em duas coisas: uma primeira, de que passaram 14 anos desde essa publicação; e uma segunda, de que muita dessa realidade se mantém inalterada. Ora vejam, 70% das crianças autistas preenchiam os critérios para pelo menos uma outra perturbação psiquiátrica e 41% tinham duas ou mais. Essas taxas muito altas de dificuldades de saúde mental foram ainda mais impressionantes porque foram observadas numa amostra baseada na comunidade e não em uma amostra clínica, onde poderíamos esperar que aqueles com problemas de saúde mental concomitantes fossem super-representados.
Desde então, muitos outros estudos foram atrás desta indicação do Siminnoff e confirmaram que pessoas autistas experimentam altas taxas de problemas de saúde mental, substancialmente mais altas do que aquelas encontradas em grupos de comparação não autistas em amostras clínicas e na população geral. Como se houvesse dúvida nos resultados obtidos por Siminnoff. Mas seria importante poder ter uma outra representatividade. Mas ainda assim, pouco ou nada tem sido feito para alterar essa mesma realidade. Até porque toda ela é uma realidade complexa.
Há um risco elevado para toda a gama de condições, incluindo ansiedade, depressão, perturbação bipolar, perturbação psicótica, obsessivo-compulsivo, do sono e problemas comportamentais.
Essas dificuldades são encontradas ao longo da vida e afectam pessoas autistas de todos os géneros. As consequências para pessoas autistas com problemas de saúde mental não tratadas incluem menor qualidade de vida, piores perspectivas de emprego e maior risco de mortalidade prematura.
Os sistemas de apoio para a saúde mental autista não são, actualmente, adequados à sua finalidade. Atenção que não estou a criticar as pessoas que prestam os serviços de saúde mental que, em minha experiência, geralmente são altamente dedicados ao seu trabalho complexo e desafiador. Ao invés disso, a falta de apoio à saúde mental da pessoa autista reflecte problemas sistémicos de longa data que resultam em profissionais sem os recursos e treinamento necessários para fornecer suporte eficaz aos seus clientes autistas. E não, não vale dizer que os estudantes de medicina e psicologia têm informação sobre o autismo ao longo da sua formação. Isso seria o mesmo que dizer que uma qualquer pessoa que leu um folheto sobre o autismo também estaria capaz de saber adequadamente sobre o autismo ao ponto de vir a realizar uma avaliação e intervenção.
A titulo de exemplo, uma investigação sobre as experiências pós-diagnósticas de adultos autistas descobriu que 45% queriam terapia psicológica para seus desafios de saúde mental, mas apenas 22% a receberam. Esta informação, na sua simplicidade permite-nos pensar em várias coisas. Uma primeira, é a de que as pessoas autistas procuram e querem ter uma resposta para as suas questões de saúde mental. Ou seja, aquela ideia de que as pessoas autistas adultas não ligam à sua situação de saúde e ainda mais não procuram ajuda não corresponde à verdade. Além do mais, também demonstra que há um número significativo de pessoas adultas a procurarem ajuda nesta fase da sua vida para as questões ligadas com o espectro do autismo. O que leva a perguntar onde é que andaram durante a infância e a adolescência? Não foram diagnosticadas nessa altura? Foram diagnosticadas mas não receberam apoio? E depois, perceber que infelizmente continuamos a ter uma percentagem considerável de pessoas autistas que neste processo não têm a ajuda necessária ou viram o seu pedido recusado. Infelizmente várias pessoas com diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo nível 1 vêm o seu pedido de apoio psicológico recusado no sistema de saúde público por não haver uma capacidade de resposta para todas as situações existentes. Portanto, há uma vontade de melhorar os cuidados de saúde mental para pessoas autistas. Mas como isso pode ser realizado?
Primeiro, precisamos de melhorias contínuas na triagem e avaliação do autismo. As pessoas autistas que crescem sem o apoio e a compreensão que podem advir de um diagnóstico de autismo correm um risco especialmente alto de ter experiências que levam a problemas de saúde mental. Muitas pessoas autistas são diagnosticadas na adolescência ou na idade adulta, muitas vezes depois de terem desenvolvido dificuldades de saúde mental. Os esforços devem ser dirigidos aos alunos do ensino primário para resolver este problema. Também precisaremos de mecanismos flexíveis para identificar pessoas que precisam de avaliação de autismo como adolescentes e adultos. Uma maneira de fazer isso é focar em populações onde sabemos que existem taxas especialmente altas de autismo não diagnosticado, por exemplo, mulheres com perturbações da conduta alimentar, pessoas sem abrigo. e aqueles com perturbação obsessivo-compulsiva resistente ao tratamento
Em segundo lugar, precisamos de suportes pós-diagnósticos padronizados e baseados em evidências que eduquem e capacitem as pessoas autistas e possam, assim, prevenir problemas de saúde mental. A investigação e a prática clínica sugerem que a psicoeducação que enfatize os pontos fortes, não apenas as dificuldades, associadas ao autismo, pode ter um efeito benéfico. Sendo que essas intervenções pós-diagnósticas devem envolver apoio entre pares, com pessoas autistas que se reunem para compartilhar experiências e conhecimentos, nomeadamente em formato de grupos de auto-ajuda. A pandemia mostrou algumas vantagens potenciais do uso de telessaúde em serviços para o autismo, desde que isso seja feito de forma flexível e em consulta com clientes individuais. O suporte pós-diagnóstico pode ser fornecido, pelo menos em parte, remotamente para melhorar a acessibilidade, a relação custo-benefício e o agendamento mais facilitado.
Terceiro, precisamos de mais reconhecimento do papel que o ambiente desempenha no que diz respeito a causar problemas de saúde mental nas pessoas autistas. Isso exigirá o afastamento de um paradigma exclusivamente de orientação médica que assume que as dificuldades de saúde mental das pessoas autistas surgem simplesmente de suas características individuais. Em vez disso, precisamos de um maior reconhecimento de que muitas vezes se espera que as pessoas autistas vivam em ambientes que são profundamente incompatíveis com eles e que isso tem consequências para sua saúde mental. A investigação e a prática clínica devem-se concentrar no ajuste pessoa-ambiente. Olhando para os ambientes em que as pessoas autistas vivem, entendendo como eles geralmente estão desalinhados com as suas capacidades e valores e encontrando maneiras de torná-los mais acolhedores. Esse trabalho pode, então, informar sobre as intervenções que procuram melhorar a saúde mental da pessoa autista, não apenas pedindo ao indivíduo que mude, mas fazendo adaptações ao ambiente, para dar aos autistas mais hipóteses de viver bem e com qualidade de vida.
Quarto, é necessário um programa de treino sistemático e baseado em evidências para profissionais de saúde mental, para que eles compreendam melhor as características e necessidades dos seus clientes autistas. Em quase todos os contextos gerais de saúde mental, os autistas procuram ajuda. No entanto, os médicos, psicólogos e outros profissionais de saúde muitas vezes sentem falta de confiança e conhecimento sobre como trabalhar com seus clientes autistas. Quando um clínico começa a trabalhar num serviço, é comum receber formação de rotina sobre assuntos como o uso seguro de dados e políticas antidiscriminação. Por que não incluir também formação obrigatória sobre neurodiversidade, incluindo autismo? Isso pode dar aos médicos e outros profissionais de saúde uma hipótese muito maior de formar parcerias produtivas com seus clientes autistas, com base no entendimento mútuo.
Quinto, devemos trabalhar para a construção de projectos especializados para a intervenção no autismo baseados em evidências em ambientes gerais de saúde mental. Sendo que a alternativa seria empreender serviços de saúde mental específicos para o autismo. Mas acho que é improvável que isso se torne um modelo generalizado, em grande parte por razões financeiras. Além disso, não está claro se os serviços especializados seriam desejáveis. Até porque aqueles que trabalham em ambientes gerais de saúde mental têm muito conhecimento a oferecer, desde que possam ser ajudados a ajustar a sua prática para acomodar os seus clientes autistas. Até porque se pensarmos, o facto de haver um tão grande número de outras perturbações psiquiátricas associadas ao autismo, parece fazer ainda mais sentido esta integração.Compreendo que o desenvolvimento de tais caminhos exigirá trabalho na próxima década ou mais. Mas isso não deve impedir o fornecimento de apoio adaptado para pessoas autistas em serviços de saúde mental nesse meio tempo.
Sexto, são necessárias mais estudos científicos acerca dos mecanismos informados sobre o autismo que causam ou perpetuam problemas de saúde mental. Não devemos supor que os problemas de saúde mental das pessoas autistas terão sempre os mesmos mecanismos subjacentes que os de pessoas não autistas. E nem podemos supor que os tratamentos projectados para pessoas não autistas necessariamente funcionarão para pessoas autistas.
Eu apoio, à semelhança de um número cada vez maior de investigadores, clínicos, pessoas autistas e não autistas, uma abordagem que enfatize a prevenção tanto quanto o tratamento e que aproveite os benefícios para a saúde mental da criação de ambientes sociais e físicos que sejam mais acolhedores para as pessoas autistas. Não tenho a ilusão de que transformar tal retórica em realidade será outra coisa senão difícil, e o sucesso não é garantido. Para ter uma hipótese de fazer um bom progresso, será essencial que a tendência actual das vozes das pessoas autistas tendo maior influência na investigação e na prática continue.
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