Não, não me enganei. É couchseling e não counseling. Porquê? Por que vou falar da experiência de pessoas autistas relativamente ao processo psicoterapêutico.
Terapia, psicoterapia, acompanhamento psicológico, counselling, são alguns dos termos usados pelas pessoas quando deram inicio a um acompanhamento especializado em psicologia clínica para uma situação sua. Não é interesse neste texto explicar as diferenças nos nomes anteriormente referidos, ainda que seja importante poder perceber que há diferenças nos mesmos e no trabalho que está a ser realizado. Por vezes as pessoas resumem de uma forma muito simples e dizem - Estou a ir ao psicólogo!
Se há alguns anos atrás a ida ao psicólogo era feito menos frequentemente, hoje em dia já não é assim. E além disso vamos tendo situações de pessoas que nos chegam e dizem - Você é o sexto psicólogo a que eu vou! Ou então, no decorrer do próprio processo terapêutico pode ser partilhado alguma experiência ocorrida no acompanhamento anterior. Seja porque houve alguma situação difícil, traumática até. Ou porque a pessoa não se sentiu escutada e validada nas suas questões trazidas.
No caso das pessoas autistas, é comum ouvirmos que a pessoa já passou por vários profissionais de saúde, sejam psicólogos, psiquiatras ou outros, e que não se sentiram validados e compreendidos nas suas questões. Nomeadamente, alguns referem que alguns desses mesmos profissionais podem ter mesmo negado a existência do diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Ou então a pessoa referir que se sentiu ridicularizada na forma como percepcionou a maneira como o profissional em questão considerou a possibilidade do diagnóstico em questão.
Seja como for, uma coisa parece certa, a maneira como as pessoas autistas vivem o processo terapêutico parece ter algumas particularidades e que pode ser importante pensar nelas. Seja porque a pessoa autista nunca realizou um acompanhamento em psicologia e desconhece muito do mesmo. Ou porque já realizou vários outros acompanhamentos anteriores e como foram diferentes sente alguma confusão acerca dos mesmos. Mas também porque nem todos os profissionais de saúde se sentem capacitados para intervir junto desta população. E aqui podemos ter pelo menos duas possibilidades: a pessoa que vem pedir acompanhamento já está identificada enquanto pessoa autista. Mas o contrário também pode ocorrer. Mas em qualquer um dos casos, pode acontecer que o profissional de saúde não se sinta capacitado. Sendo que todas estas questões levam à ocorrência de um conjunto de situações difíceis para a pessoa autista, mas também para o profissional de saúde. Até porque muitas vezes se procura aplicar as ferramentas e os programas de intervenção psicológica sem qualquer tipo de adaptação quando se trabalha com pessoas autistas. Facto que leva a que em muitas situações os benefícios terapêuticos não se façam sentir, ou até mesmo o abandono precoce da terapia. No entanto, nada como poder ler aquilo que as próprias pessoas autistas vão dizendo do acompanhamento.
Teria ajudado muito que o terapeuta pudesse ter explicado o que eu poderia esperar deles, diz Vanda (nome fictício).
Foi um enorme desafio quando os terapeutas não deixaram claras as limitações da situação terapêutica, diz Bruno (nome fictício).
Ambos os serviços, e particularmente o serviço de aconselhamento na universidade, deram muitas informações com antecedência sobre o que esperar, diz Rute (nome fictício). Ainda que estivesse absolutamente apavorada, mas pelo menos levou-me a um ponto em que eu poderia realmente enfrentar a partida!, conclui.
A ansiedade e a incerteza são partes grandes da experiência da pessoa autista. Não é por acaso que muitos referem a necessidade de certeza sobre como o aconselhamento funciona, o que é bom e o que não é, o que é e o que não é esperado. Parte de conhecer as regras também é saber o que o cliente quer do aconselhamento.
Eu não sabia o que dizer nas sessões, ou como as usar, diz Cláudia (nome fictício). Cheguei a ter um psicólogo que além de me explicar que tipo de ajuda ia dar e o que eu poderia esperar, escreveu a informação e disponibilizou-a, diz Telmo (nome fictício).
Em muitas situações quando escrevo sobre o autismo e as pessoas autistas fico com a sensação de que há pessoas que ficam a pensar que as pessoas autistas são menos capazes que as pessoas não autistas. Talvez pela forma como escrevo, confesso que possa ser possível. Mas também porque elas próprias já trazem ideias pré concebidas sobre o autismo e as pessoas autistas. E por isso sublinho que não é justo supor que as pessoas autistas têm menos compreensão do que as pessoas não autistas de como funciona o aconselhamento.
Foi muito difícil adaptar-me e começar a sentir-me confortável a conversar com alguém que eu não conhecia, diz Rui (nome fictício). A comunicação no inicio foi muito difícil porque eu estava incrivelmente ansioso e assustado, conclui. A parte mais difícil para mim foi confiar num estranho, diz Carlos (nome fictício). Como é que eu sabia que ele ia ouvir e compreender os meus limites? Como é que eu saba que ele ia saber o que isso significava para mim?, conclui. Eu não tinha muita certeza do que era fazer acompanhamento e não senti que isso me tenha sido explicado, diz Anabela (nome fictício). O terapeuta não me ajudou a entender como trabalhar com ele, refere Ângela (nome fictício). Alguns dos meus traumas, e não são poucos, não foram considerados por alguns terapeutas, diz Manuel (nome fictício).
Mas nem tudo ou todas as dificuldades tem a ver com a relação terapêutica em sim. O próprio espaço terapêutico, o setting, e todo o meio envolvente é importante. Ainda que tudo participe para a construção da relação terapêutica, parece importante criar aqui esta subdivisão, até pela sua importância na vida das pessoas autistas. A luz, barulho e cheiros são desafios sensoriais comuns para pessoas autistas. Enfrentar alguns dos desafios sensoriais do espaço pode incluir fechar persianas ou cortinas se o sol estiver forte, fechar uma janela se houver muito barulho lá fora, desligar as luzes fluorescentes por causa da distração da mudança de cores ou ruído, remover um relógio e em breve.
O meu terapeuta actual tem sido muito cuidadoso e claro sobre as configurações e conforto no espaço, diz Ana (nome fictício). Ela apaga as luzes se eu precisar, mantém a voz baixa, ou mantém o corpo numa postura firme, continua. Já estive em gabinetes com imensos estímulos, diz Rafael (nome fictício). Não conseguia ali ficar, não por causa do terapeuta, mas porque não me conseguia focar em nada do que ali acontecia, acrescenta. E como não nos conhecíamos acabei por não lhe dizer nada e deixei de aparecer, conclui. Não gosto de ficar sempre no mesmo sitio dentro da consulta, diz Amadeu (nome fictício). Por vezes apetece-me ficar no chão, e para mim é importante que o terapeuta não se importe, diz Rute (nome fictício). Nem sempre me apetece ficar de frente a frente com a terapeuta e por isso é importante que ela o compreenda, diz Carla (nome fictício). A minha primeira consulta é sempre muito difícil, diz António (nome fictício). Conhecer um espaço novo pela primeira vez é extremamente difícil. Já tenho pedido a alguns terapeutas que me enviem fotos do espaço das consultas, mas nem sempre eles o fazem, conclui.
Os psicólogos clínicos têm um modelo de intervenção com o qual se identificam e procuram usar na conceptualização e intervenção. Contudo, precisam de pensar que o mesmo necessita de ser adaptado à pessoa.
Para mim, um foco em Terapia Comportamental e Cognitiva por si só não ajuda, diz Raúl (nome fictício). Tudo o que faz é apontar mais coisas que eu deveria estar a mascarar e ensina-me a colocar mais esforço em mascarar ou invés de me fazer entender a mim mesmo e aos outros de uma forma mais adequada, acrescenta. Este tipo de terapia ensinou-me que as coisas que eu faço e penso são erradas, o que aumentou a minha ansiedade e convenceu-me de que estava a inventar os meus sentimentos e problemas, diz Rafaela (nome fictício). Preocupo-me muito, diz Afonso (nome fictício). Devido à minha tendência a esconder os meus sentimentos, a minha terapeuta pode não entender completamente as dificuldades que sinto no dia a dia, conclui. Podemos estar a passar por um momento mais difícil do que parece, refere Júlia. E nessas alturas podemos guardar as coisas dentro de nós porque nos preocupamos que podemos estar a exagerar, continua. Até porque no passado, houve outros que nos podem ter feito sentir como um fardo, então podemos fazer muito trabalho interno sem contar ao nosso terapeuta, acrescenta. Podemos não ser capazes de articular os nossos sentimentos. Talvez precisemos de nos comunicar não verbalmente, conclui.
Os aspectos relacionados com o processamento da informação e da alexitimia também são importantes a serem considerados. O primeiro pode significar que a ansiedade, ou outros sentimentos, são experimentados mais tarde na sessão ou depois que o cliente sai da sessão. O último pode significar que um cliente não está necessariamente consciente de estar ansioso, inseguro ou se está a sentir uma emoção ou sensação física, ou consciente das emoções, mas incapaz de nomeá-las.
Quando falei sobre como me sentia, a terapeuta disse-me que eu estava distante de como me sentia, diz Fábio (nome fictício). Presumivelmente porque sou autista e não estava a ter os comportamentos correctos para sinalizar os sentimentos genuínos, acrescenta. Comecei a acreditar que deveria estar completamente desapegado das minhas emoções, embora estivesse a experimentar emoções intensas e o que eu queria eram as ferramentas para lidar com elas, refere. As sessões fixas podem nem sempre ser a melhor solução devido à nossa necessidade de tempo de processamento, refere Tomás (nome fictício). Às vezes o terapeuta terminava uma sessão com algo bastante emocional e depois perguntava se eu estava bem o suficiente para sair na hora, mas não parecia ter muito espaço para dizer não, então acho que gostaria de ter uma período de resfriamento de 5 minutos no final, onde conversamos sobre coisas não emocionais ou algo assim, diz apressadamente Paula (nome fictício).
Embora a ansiedade esteja intimamente associada ao autismo, ela é separada do autismo. E em parte é preciso considerar que muita desta ansiedade advém do facto do mundo não estar projectado para as pessoas autistas. E necessita haver um grande esforço por parte das pessoas autistas no seu dia a dia para se conseguirem adaptar. A educação sobre esse aspecto é importante, pois algumas das respostas falaram sobre conselheiros que consideravam a ansiedade uma parte genética ou inevitável de ser autista e, portanto, não a abordaram.
Nesta terapia, estamos a trabalhar a melhor forma para entender de onde vêm as minhas crenças centrais, diz Alberto (nome fictício). Tentamos separar as coisas que fazem parte do autismo, das coisas que são baseadas na ansiedade e que podem ser mudadas, acrescenta.
Falei sobre a sobrecarga sensorial e os colapsos e como as minhas preocupações em espiral em torno do calor tendem a girar à volta da preocupação de vir a desencadear um colapso, diz João (nome fictício). A minha terapeuta perguntou se isso já havia acontecido. E eu disse que os meus colapsos raramente têm uma causa singular, há um gatilho de “última gota”, mas quase sempre há outras coisas a acontecer, acrescentou. À medida que progredimos, ficou claro que ela entendeu que isso nunca havia acontecido e não era uma preocupação realista, o que foi frustrante! conclui. Eu gostaria que os terapeutas soubessem sobre as diferenças sensoriais e como elas diferem de fobias e meltdowns ou shutdowns e como elas diferem de ansiedade e ataques de pânico, refere. Não que você não possa ter todos os itens acima ou eles não possam ser ligados, é claro! conclui.
A angústia é um tema recorrente na terapia. Ser dominado pela emoção, chateado quando os planos ou rotinas são interrompidos, mascarar a aflição do mundo exterior, stimming como um meio para acalmar a angústia, etc. Mas é importante poder entender que a angustia sentida não é expressa de forma neurotipica. E como tal, se uma pessoa autista diz Estou angustiado, é para ser considerado enquanto tal mesmo que não o pareça.
Ouçam as minhas palavras, não o meu tom, diz José (nome fictício). Eu gostaria que eles prestassem atenção à minha linguagem corporal, diz Francisca (nome fictício). Eu tenho sinais muito claros quando estou angustiado, diz Renato (nome fictício). Eles simplesmente não são o que uma pessoa neurotípica faria, conclui. Só porque alguém pode ser muito habilidoso em mascarar os seus comportamentos não significa que não esteja com dor, diz Clara (nome fictício),
Alguns terapeutas fazem apontamentos nas sessões. Mas é importante poder pensar na importância que esta estratégia pode ter para algumas das pessoas autistas. Por exemplo, o facto de poderem escrever com antecedência os pontos que consideram importantes para trazer para as sessões. Ou até mesmo de fazerem apontamentos durante as sessões para poder recordar mais e melhor o que foi abordado durante as sessões. E não, não me estou apenas a referir a sessões com crianças e adolescentes autistas. Também estou a pensar nos adultos. Assim como o próprio tempo de duração de uma sessão. Se estas têm normalmente a duração de 50 a 60 minutos, podemos pensar que as pessoas autistas podem ter determinadas necessidades diferentes. Nomeadamente, na utilização do tempo. Por exemplo, algumas pessoas autistas levam algum tempo mais para iniciar a sessão. Ao invés, há outros para os quais as sessões podem ter uma duração superior à desejada. E tal como em muitas situações, há temas que podem levar a necessitar da sessão poder ser maior do que o habitual.
As situações não se esgotam aqui. Mas o texto já vai em 10 minutos de leitura. E para alguns isso pode ser mais do que excessivo. Ainda bem que a fotografia têm um sofá. Talvez possa ser uma pista adequada para alguns a seguir irem fazer uma pausa.
É fundamental que as próprias universidades, assim como as Sociedades cientificas em psicologia possam continuar a apostar numa formação mais abrangente dos futuros profissionais de psicologia, para que estes possam estar mais adaptados a trabalharem com uma população neurodivergente.
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