A Luísa (nome fictício) que está na imagem a representar todas aquelas seis emoções tem quinze anos, quase a fazer dezasseis. Ela tirou aquelas fotos no seu portátil e tem estado a fazer um compendio de imagens que representam emoções. Porquê? Não, não é para nenhum projecto da escola. É para a sua mãe. A Telma (nome fictício), mãe da Luísa, tem cinquenta e seis anos. Foi mãe aos quarenta. Não apenas por questões académicas e depois profissionais como é tão habitual nos dias de hoje. Mas principalmente por questões de ter andando desamparada todo um conjunto vasto de anos em profissionais de saúde mental.
A Telma foi diagnosticada recentemente com Perturbação do Espectro do Autismo. No entanto, durante muitos anos, desde os seus oito anos, que o diagnóstico principal é de Depressão. Em criança além da depressão era referida como uma criança muito introvertida, pouco comunicativa e expressiva. Não procurava as outras crianças para brincar. E quando estas a procuravam as coisas nem sempre corriam bem. Muitas vezes as crianças diziam que ela não sabia brincar. Não que Telma não soubesse o que era preciso fazer numa brincadeira em que uma seria a professora e a outra uma aluna. Telma sabia disso tudo e muito bem. Tinha lido e estudado muito atentamente todas as brincadeiras para poder saber fazê-las. Sim, porque Telma queria fazer as brincadeiras. Mas as outras crianças continuavam a dizer que ela não sabia brincar. E principalmente porque ela não percebia o que as outras estavam a querer dizer. Não propriamente a querer falar, mas sim a querer dizer, no sentido de expressar não verbal e emocionalmente alguma informação. Eu não percebia quando brincávamos às bonecas quando elas diziam que a Cindy (nome da boneca) estava triste. Eu olhava para a boneca e ela estava igual, diz Telma. E no dia anterior quando brincamos com a boneca a minha amiga dizia que ela estava contente. E a boneca tinha uma cara igual, e eu não percebia, continua. Claro que não era apenas com as bonecas. Eu também não percebia a cara das pessoas, conclui.
Para além de desejar brincar com as outras crianças, pelo menos em alguns momentos, Telma também sentia empatia pelos outros. Esta situação de as outras crianças dizerem que ela não sabia brincar deixava a Telma frustrada, mas também preocupada com as outras crianças. E isto porque aos dez anos os pais levaram a filha a um médico que levantou a hipótese de se tratar de uma situação de Síndrome de Asperger, nome que ainda era dado na altura. O pai da Telma é médico e como tal estes e outros nomes não lhe são estranhos apesar da sua especialidade ser Dermatologia. Sempre foi um aluno muito curioso e ao longo do curso foi-se interessando por outras áreas, nomeadamente a Psiquiatria. Negou logo essa possibilidade do diagnóstico de Síndrome de Asperger. A mãe da Telma nem sequer teve opinião no assunto. Saíram do gabinete médico sem dizer mais nada. E assim foi durante todos estes anos. Ainda que a mãe da Telma sempre tenha suspeitado de algo. Não sabia o nome a dar, mas a ideia de Depressão não a deixava tranquila. Não apenas porque continuava a ver que a filha não parecia evoluir na sua situação clínica, mas principalmente porque a via a sofrer. E se havia coisa que a mãe da Telma percebia era de sofrimento. Além de se identificar com a filha em relação a muitas daquelas coisas.
Na adolescência a Telma começou a fazer anti-depressivos. A sua situação clínica teve um agravamento. Era a adolescência diziam algumas pessoas. A idade do armário, diziam outros. Mas o certo é que a Telma parecia nunca ter saído do armário, usando essa mesma expressão. Além de recorrer algumas vezes a sítios fechados ou mais isolados, tais como os armários, para se isolar e esconder de algumas situações que parecia não suportar. A situação da incompreensão do que os outros poderia estar a querer dizer ou a sentir continuava presente. Sendo que agora na adolescência a situação tinha um impacto maior e mais devastador. E as suas colegas pareciam já não ser tão compreensivas quanto o foram em crianças. Algumas das suas colegas acompanhavam a Telma desde o Jardim de Infância. Os rapazes nem sequer se aproximavam da Telma, coisa que ela agradecia, ainda que ninguém percebesse isso. Até porque a sua própria expressividade facial e emocional era um enigma. A sua mãe parecia ser a única interlocutora e que quando lá por casa ia dizendo o que a Telma poderia estar ou não a sentir. Não acertava sempre, mas falhava pouco, diz Telma.
Passaram a dizer que Telma era antipática e nada empática. Os nomes passaram a ser outros, Já não era o tu não sabes brincar, habitual na infância. Já era algo que atingia mais profundamente a Telma e tudo isso veio a agravar a situação clínica e o sofrimento psicológico. Começaram a surgir as auto-mutilações. Telma não sabia o que se passava consigo. Nunca o soube. Não conseguia perceber aquilo que via que as outras pessoas pareciam perceber. Como é que estás? Estou bem! ou Estou mal ou também Mais ou menos, Normal, etc. Estas e outras perguntas e respectivas respostas que Telma via que se fazia no seu quotidiano desde sempre e que desde sempre viu as pessoas a responder rapidamente, ela nunca percebeu, além de não saber ela própria responder em relação a si mesma. Sempre que ouvia um Como estás? a ser perguntado a alguém que não a si, Telma procurava responder e não conseguia. Não sabia como estava ou como esteve. E na altura já tinha dezanove anos e continuava sem saber. Se lhe perguntassem para fazer uma retrospectiva da sua pessoa, Telma limitava-se a falar acerca dos seus objectivos alcançados, nada sobre o sentir assim ou assado.
Foi para a Universidade e continuou com grande custo a fazer a sua formação. Sempre foi uma aluna brilhante, mas o sofrimento psicológico sempre lhe pesou muito, e naquela altura ainda mais. E quando estamos a falar de sofrimento psicológico, isso não significa que Telma soubesse dar-lhe um nome, porque não sabia. Aquilo que Telma dizia é de que não se sentia bem. Não sabia o que se passava. Abanava os ombros na maior parte das vezes. E as outras pessoas continuavam a dizer Depressão. Isto é claramente uma Depressão, repetiam. Telma desistiu do que quer que fosse e de procurar alguma resposta diferente. Assumiu que seria depressão e que iria fazer o que lhe diziam para fazer e para tomar. Desistiu de viver. Não como habitualmente as pessoas pensam. Não pensou em suicídio. Nunca pensou. Mas foi pior do que tudo isso, deixei de viver, o que quer que isso signifique, referiu. Como é que eu haveria de chegar à ideia de me suicidar?, pergunta de forma retórica. Eu não sabia e ainda hoje não sei muito bem o que sinto, diz. As pessoas que eu já ouvi dizerem que que tentaram matar ou que já pensaram nisso, dizem também que já sentiram todos esses sentimentos. Eu nunca senti nada disso, nada, conclui.
Ao longo destes anos todos, a Telma, assim como muitas outras mulheres e homens, com características comportamentais e situações semelhantes, apresentam Alexitimia. E além desta condição, também acumulam em muitas situações um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. E não, nem todas as pessoas autistas apresentam características que pode levar a pensar em ausência de empatia. Há uma grande variabilidade na forma como as pessoas autistas se apresentam, e esta é também uma delas. E por isso, confundir a falta de empatia com a ausência ou grande dificuldade em reconhecer as suas próprias emoções e as dos outros não é a mesma coisa. Assim como o diagnóstico principal da Telma não é de Depressão, ainda que ela cumpra critérios para esse diagnóstico.
A Luísa, filha da Telma tem estado a ajudar a mãe a fazer um caderno para que a mãe consiga identificar mais facilmente nos outros mas também em si próprias, estas e outras emoções. Como? No caso das próprias emoções, a Telma tira uma selfie em determinada situação e procura perceber como é que a sua expressão se aproxima a algumas daquelas fotos da Luísa. Até porque a Luísa também é muito parecida à Telma. Assim como a Telma também o era em relação à sua própria mãe.
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