Já todos usaram a analogia do icebergue para se referirem a algo que nem todos conseguem perceber mas que na verdade está a acontecer, certo? Na área da saúde mental é frequentemente usado para chamar a atenção para um conjunto de características que parecem invisíveis mas que na verdade existem e por norma estão até em maioria comparativamente aquilo que está à vista na superfície. Mas depois também há aqueles que continuam a negar o aquecimento global!
A imagem que serve de apoio a este post foi publicada recentemente pela NASA. É um icebergue de 315 biliões de toneladas que se desprendeu na Antártica. O iceberg tem cerca de 1.636 Km2 equivalente à cidade de São Paulo no Brasil. O facto parece inegável e igualmente preocupante. E as consequências derivadas deste fenómeno são em parte conhecidas e irão afectar o planeta de uma forma global e alguns países em particular com a subida das águas derivado do seu degelo. Apesar da pertinência do tema não pretendo falar sobre o mesmo. Deixarei a Greta Thunberg continuar a encabeçar este movimento.
Aquilo que gostaria de reflectir prende-se com outro tipo de "desprendimento" e que ocorre nas Perturbações do Neurodesenvolvimento. A Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) e a Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA) têm sofrido ao longo destes anos um conjunto considerável de avanços. Seja na sua conceptualização e compreensão a nível teórico, desenvolvimento de novos instrumentos para avaliar mais compreensivamente as suas diversas características e o desenvolvimento de novas intervenções psicoterapêuticas e farmacológicas.
Como tinha referido na introdução é habitual o uso da analogia do icebergue para chamarmos a atenção das pessoas para aquilo que não está tão visível em determinadas condições neuropsiquiátricas, pensando nomeadamente na PEA e na PHDA. É frequente pensar-se na PEA e na sua face aparentemente mais visível caracterizada pela maior dificuldade na interacção social e comunicação. E por norma a noção que as pessoas na sua maioria têm é de um quadro bastante agravado. Ou seja, as pessoas com PEA não desejam ter relações sociais e apresentam graves lacunas na comunicação verbal e não verbal. Não que não existam casos de pessoas com PEA que apresentem estas características mais agravadas e com maior impacto no desenvolvimento, porque existem. No entanto, há uma constelação mais variadas de características nas pessoas com PEA que representam aquilo que na analogia do icebergue está oculto à visão. Lembrem-se do Principezinho - "O essencial é invisível aos olhos.".
No caso da PHDA podemos pensar que os 10% que vemos facilmente acima da marca de água, continuando a pensar na analogia do icebergue, são os principais sintomas da PHDA: desatenção, impulsividade e hiperactividade. Eles são importantes, é claro, mas não são a imagem completa da PHDA. O que está sob a superfície é tão (se não mais) importante ao acompanhar crianças, jovens e adultos com PHDA.
Se pensarem no Titanic e do que o fez afundar-se lembrem-se que não foi os 10% da parte visível do icebergue mas sim os restantes 90% que estava abaixo do nível da água. Ou seja, chama-se a tenção para todo um conjunto variado de características que podendo não ser conhecidas levam a um agravamento do quadro clínico e de factor de manutenção dos outros sintomas mais visíveis e de um maior sofrimento psicológico. Por exemplo, no caso da PEA, a existência de hipersensibilidades diversas associado a um quadro de ansiedade ou de alteração do humor (depressão) leva a um agravamento claro dos sintomas mais visíveis na PEA e também na PHDA. E estas outras condições neuropsiquiátricas são bastante frequentes de co-ocorrer com ambas as condições PEA e PHDA.
Outras questões para além da existência das outras condições neuropsiquiátricas associadas à PEA e PHDA prende-se com a existência de compromisso nas Funções Executivas. Nomeadamente, compromissos na memória de trabalho e na recuperação de informação. Esta situação tem um compromisso grande no processo de aprendizagem em contexto escolar mas também profissional e já para não falar das relações sociais. A memória de trabalho prende-se com a informação a ser usada no contexto mais imediato e a recuperação da informação como o próprio nome indica prende-se com a possibilidade ou neste caso com a dificuldade em aceder a informação anteriormente aprendida. Mas nas Funções Executivas ainda podemos falar de outras dificuldades mais ao nível da capacidade de regulação e controlo das emoções. Em ambas as condições, PEA e PHDA é comum verificarmos situações a que muitas pessoas continuam a chamar de "birras".
Mas voltando à questão do desprendimento do icebergue gigante da Antártida gostaria também de reflectir sobre uma outra consequência nesta área das perturbações do neurodesenvolvimento - a sobreposição da PEA e PHDA. Da mesma forma que o deslocamento deste icebergue irá ser seguido de perto pot todo um conjunto de autoridades. Também se verifica a urgência de reflectir a forma como pensamos sobre estas questões climáticas e das próprias alterações que necessitamos todos de fazer. Aqui no espectro também é fundamental continuar a correr a seguinte reflexão entre a sobreposição da PEA e PHDA.
Se notarem ao longo do texto as situações apontadas para a PEA são em quase tudo semelhantes para a PHDA. O que tem levado a que alguns autores tenham falado talvez de forma mais dramática sobre o desaparecimento ou a diluição da PHDA em detrimento da PEA. Parece-me impulsivo, ainda que o próprio conceito de impulsividade, à semelhança de tantos outros que usamos no nosso quotidiano clínico, necessite ele próprio de ser pensado sobre o que significa ou pode representar. Penso que esta questão pode ter uma certa representação naquilo que se tem feito de alguma forma no combate às alterações climáticas. Por exemplo, se pensarmos na mudança de automóveis movidos a combustão para eléctricos parece-nos logo à partida uma excelente iniciativa. Isto até começarmos a pensar na pegada ecológica que representa a construção dos componentes para estes mesmos veículos eléctricos, nomeadamente a questão da exploração mineira para o acesso ao lítio tão precioso para as baterias. Por isto e tudo mais penso que é urgente pensarmos em tudo mas que essa urgência não atropele o bom senso e venha a criar um problema igualmente grande.
Os circuitos neurobiológicos da PEA e da PHDA são partilhados o que leva a pensar nesta questão da sobreposição entre ambas e do facto de algumas características serem tão semelhantes. No entanto muitos de nós consegue verificar um conjunto de outros sinais que são distintivos entre ambas, seja ao nível da interacção social mas também da comunicação e da existência de outras características tais como as hipersensibilidades e aspectos relacionados com o pensamento sobre sos seus próprios pensamentos acerca de si e do Outro (metacognição). Claro que há sempre casos clínicos mais desafiantes, nomeadamente pela multiplicidade de sinais e sintomas existentes. Haverão sempre. Mas a grande maioria continua ainda a ser um distinção entre ambas as condições, PEA e PHDA, e recordo para o facto de precisarmos de continuar a olhar para aquilo que são as características que estão mais ocultas e que necessitam de ser vigiadas ao longo deste seu percurso desenvolvimental. Seja ao longo do ciclo de vida do próprio em que lembro que as características elas próprias se vão alterando. Pensem no icebergue que ao longo da sua viagem também vai derretendo, seja na superfície mas também na sua parte mais oculta. Não só mas também pensar que a PEA e PHDA observada e descrita clinicamente nos seus primórdios já não é o mesmo da actualidade. Não só porque as pensarmos diferente mas também porque elas próprias se têm alterado. Mais uma vez pensem nas alterações climáticas de antes e de agora e também conseguem perceber grandes diferenças.
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