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Foto do escritorpedrorodrigues

Smell like teen spirit

Com esta imagem já deu para perceber que não vamos falar da reedição do mítico álbum dos Nirvana, Nevermind, ainda que este esteja a celebrar 30 anos. E talvez alguns de vocês já nem queiram ler o que vai ser dito a seguir tendo em conta que ficaram suficientemente enojados com a imagem usada neste texto. E outros estarão suficientemente capazes de se lembrar da última vez em que estiveram em situação semelhante ao ponto de conseguirem recuperar mentalmente o odor sentido naquela altura. Nas questões em torno da sensorialidade há uma grande variabilidade de possibilidades, e que precisam de ser melhor compreendidas por todos nós.


Muitos de vocês sabem e outros já têm lido aqui e em outros sítios, que as questões da sensorialidade é uma presença quase constante no autismo. Ao ponto de se saber que as diferenças de reactividade sensorial, um dos sub-critérios nos interesses e comportamentos restritos e repetitivos estão presentes em cerca de 94% das pessoas autistas adultas.


O meu marido faz imenso barulho a comer, diz Júlia (nome fictício). O ruído da estática dos eletrodomésticos muito frequentemente não me deixa dormir, diz Paulo (nome fictício), Pensar em entrar numa grande superfície comercial é impensável para mim, diz Cristina (nome fictício). Seria a mesma coisa que entrar num campo minado de olhos fechados, diz. A luz, os ruídos e o número de pessoas a circularem desordenadamente de um lado para o ouro é drenante, conclui.


Não saio de casa sem o recorte daquele tecido acetinado que levo no bolso, diz Raúl (nome fictício). Há noite ligo o leitor de DVD mas sem estar ligado à Tv, diz Jonas (nome fictício). Aquilo que me interessa é ouvir o ruído que o mecanismo faz ao rodar, acrescenta. Quando há uma música que sai e que gosto fico a ouvi-la repetidamente durante dias, comenta Joana (nome fictício). Há dias em que dou comigo a olhar para o vazio. Mas na verdade estou a olhar para as partículas de pós em contraluz com a luminosidade dos estores, refere Joaquim, (nome fictício). Agora já não, mas em jovem os meus pais ficavam assustados quando eu saia do banho e tinha a pele toda vermelha, e pensavam que tinha feito alguma queimadura. Chegaram inclusive a levar-me ao hospital, diz José (nome fictício).


Se por acaso alguém deixar um enchido dentro do frigorifico e o involucro estiver aberto, tenho de atirar toda a comida para o lixo, pois já não consigo comer mais nada. Toda a comida fica impregnada com aquele odor, diz Amélia (nome fictício). Eu só consegui vestir roupa interior aos 19 anos, diz Carla (nome fictício). Foi horrível porque a minha mãe obrigava-me a vestir roupa interior desde cedo. O meu corpo cresceu muito precocemente. Aquilo que eu fazia era tirar a roupa na escola. Quando os meus pais descobriram pensaram que eu andava a fazer alguma coisa estranha. E os rapazes assediavam-me muito e as outras raparigas gozavam-me e atacava-me. Só mais tarde percebi o porquê, conclui.


Em jovem costumava apertar os atacadores e o cinto das calças com bastante força, diz Tomás (nome fictício). Mais tarde sentia que isso era algo que me satisfazia nas relações sexuais e nem sempre as minhas namoradas compreendiam. Pensavam que era um fetiche, conclui. Durante determinado tempo os meus pais acharam que eu era Esquizofrénico, porque eu dizia ouvir coisas que mais ninguém conseguia, diz Guilherme (nome fictício). No trabalho sinto-me um frango assado a aguardar para ser comprado na vitrine, diz Carlos (nome fictício). A luz que está sob mim acaba por me dar uma dor de cabeça intensa, acrescenta. Até os meus pais perceberem que a luz solar me afectava desta forma, foi horrível todas aquelas vezes na praia, diz Mariana (nome fictício). Ficava horas debaixo do chapéu de sol e completamente coberta. Sentia-me um monstro, conclui.


A partir de determinada altura passei a sair de casa apenas à noite, diz Sílvia (nome fictício). Além do calor, a luz é impensável de aguentar. Mas foi difícil os meus pais perceberem isso. Em adulta comecei a trabalhar no turno da noite e passei a dormir durante o dia, conclui. Houve um período na adolescência que fui encaminhada para a consulta da Perturbação da Conduta Alimentar, diz Beatriz (nome fictício). Os médicos diziam que o meu comportamento de ingestão compulsiva era uma evidência de Bulimia, acrescenta. Mas não tinha nada a ver com isso. Eu tenho uma procura sensorial muito grande para doces e comia imensos. Ao fim de algum tempo o meu peso aumentou muito e para o controlar comecei a induzir o vómito. Só mais tarde é que conseguiram compreender o que se passava comigo, mas até lá sofri imenso, conclui.


Na maior parte das vezes em que estou a sentir-me imersa a nível sensorial fico sem saber o que fazer, até porque na maior parte das vezes, estas situações levam a um grande aumento da ansiedade. E a ansiedade constante ao longo do tempo levou-me a antecipar as situações. E adicionalmente tenho ficado cada vez mais deprimida, diz Carolina (nome fictício). E aquilo que percebo é que tudo está dependente do meu humor, conclui. O meu maior desejo se tivesse dinheiro seria viver no meu país no inverno e ir para a Europa do norte durante o verão, diz Cátia (nome fictício).


Todos estes e outros exemplos vividos repetidamente, dia após dia, ao longo de uma vida, leva a criar um desejo de previsibilidade e controlo sobre os estímulos sensoriais. Assim como, o nível de controlo sobre a entrada sensorial e a intensidade desta mesma entrada pode ser diferente consoante se é percebida como uma experiência agradável ou aversiva. Os adultos autistas geralmente experimentam diferenças de reactividade sensorial, até pela diversidade de exemplos que pode ler anteriormente. A hiperreactividade sensorial é mais frequentemente investigada, até porque se encontra com maior frequência, enquanto que hiporeactividade e procura sensorial, e as experiências sensoriais em todos os domínios, por exemplo, visão, são muitas vezes negligenciadas. E como tal, esta é uma área ainda muito cinzenta, seja naquilo que está na base deste fenómeno, mas também a forma como o mesmo é vivido pela pessoa, e como é que pode ser trabalhado na intervenção.


As diferenças de reactividade sensorial podem ocorrer em vários domínios sensoriais, tais

como visão ou toque, e são caracterizados por hiperreactividade, hiporeatividade e procura sensorial. As pessoas hiperreactivas muitas vezes experimentam a entrada sensorial mais intensamente em comparação com outros, e pode senti-lo como algo doloroso, desregulador, ou esmagador. As pessoas autistas com um perfil sensorial mais hiporeactivo muitas vezes têm uma resposta com delay, ou pode não ter sequer noção. Além de poder haver situações de alternância entre ambos os perfis sensoriais. As pessoas com um padrão mais de procura senorial procuram muitas vezes envolver-se na entrada sensorial. Procurando-a de forma repetida e/ou por períodos sustentados de tempo e pode ser uma estratégia estimulante ou reguladora.


As experiências sensoriais podem ser complexas e embora algumas experiências sensoriais poderem ser agradáveis, outras experiências podem ser muito angustiantes, e com enorme

impacto na qualidade de vida, além de ter uma alta correlação com as condição de saúde mental, tais como a ansiedade e depressão.


Não é, portanto, surpreendente que essa situação difusa ao nível da entrada sensorial seja vista como uma barreira para os adultos autistas se envolverem em espaços públicos, mas também ocupacionais. Assim, urge compreender o complexidade das experiências sensoriais e as múltiplas implicações importantes para o bem-estar físico e mental das pessoas autistas, da sua inclusão social, e perspectivas futuras.


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