Há algum tempo que a etiqueta o incomodava. João (nome fictício), estava incomodado na cadeira. Parecia irrequieto. Normalmente não costumo estar assim, refere. Esqueci-me de cortar a etiqueta, acrescenta. Compreende?, pergunta-me. João procurou a consulta para fazer o despiste de diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. João tem 43 anos. Cansei-me de viver nesta condição, diz. Não nesta condição que suspeito ter. Refiro-me a esta condição de vida, acrescenta. De não saber o que sou ou quem sou, finaliza. Empresto-lhe a tesoura para ele cortar a etiqueta. Parece ficar mais confortável. Se soubesse o que já ouvi dizerem da minha pessoa, desabafa. Olha a sala em volta e afunda-se no sofá. Parece ficar mais confortável. Deixei de falar com parte da minha família. Além de gritarem comigo, chamaram-me de tudo. Desde arrogante, egoísta, anti-social, psicopata e ultimamente de autista. Após qualquer daqueles adjectivos a minha mágoa e ira crescia. Não me compreendiam, mas principalmente não me respeitavam. E adicionalmente desrespeitavam-me adjectivando-me de tudo o que parece haver de mais horrível no mundo. E no final ainda me chamaram de autista. Confesso que na altura fiquei possesso, desabada. Ironicamente, hoje estou aqui consigo para fazer um despiste de Perturbação do Espectro do Autismo, sorri. Na altura tinha 16 anos. Não sabia o que era o autismo. Ou antes, sabia erradamente o que era o autismo. Naquilo que ouvia dizer da boca dos outros. Fosse da minha família, mas também de alguns dos meus colegas. És autista ou quê? Não percebes? Deves ser autista! Diziam muitos deles. E quando decidi fazer queixa a alguns dos meus professores ainda me disseram que eles não diziam aquilo por mal. Eu não percebia! Como é que alguém podia dizer aquilo a alguém e não ser por mal? E ainda por cima eu nem sequer percebia porque me chamavam de autista! Mas sentia que era errado fazerem-no! Mais tarde quando passei a ligar às questões da política, passei a ver mais televisão e a ler algumas noticias. E de vez em quando lá volta a ver - A ministra que parece autista! ou As decisões do senhor deputado são autistas!. Mas também no futebol. Apesar de não gostar mas ouvia os meus colegas gritarem - Já ouviste, já ouviste, o treinador chamou o presidente da Liga de autista?!, e depois riam todos. Até o meu pai. Um dia fartei-me. Estava no 10º ano. Andava cansado com todas aquelas situações. E eu já tinha tanto para lidar. Estava na altura dos testes. Quando o meu colega me voltou a gritar aos ouvidos - Mas é autista ou quê?! Não aguentei e dei-lhe um soco. Todos começaram a ficar mais agitados e contra mim. Tive um processo disciplinar na escola. Fiquei de castigo em casa. Disseram-me que nunca mais podia fazer aquilo. Eu nunca mais fiz aquilo. E durante muito tempo nunca mais fiz grande coisa. Desisti da escola. Ainda que tenham obrigado os meus pais a me levarem a terminar a escola. Fiz o que disseram. Acabei a escola. E depois disso fiquei em casa. Deixei de acreditar que não valia a pena viver. Não daquela forma. Estive assim até há cinco anos atrás. Quando a minha mãe morreu, senti que tinha de fazer as coisas diferentes. Comecei a procurar ajuda, não sabia muito bem para o quê. Um dia lembrei-me do meu colega no 10º ano a gritar ao ouvido - Mas é autista ou quê? E foi assim que cheguei aqui.
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