A pergunta não é minha, mas a inquietação sim. "Se não sabe, porque é que pergunta?" é de João dos Santos. Colocar perguntas nem sempre é sentido como algo positivo. Chega, em alguns momentos a ser incómodo. Na maior parte das vezes para o Outro, mas acredito que em alguns momentos para o próprio também. Seja dentro ou fora do seio familiar, no grupo de amigos ou colegas, ou simplesmente perante a Sociedade, muitas vezes varremos o lixo para debaixo do tapete. Há questões difíceis, assim como silêncios, não ditos (mal)ditos, fugas para a frente e evitamento, não esquecendo os tabus. Todos eles enformam as relações e deformam a identidade da pessoa. Que não fiquem com a ideia de que são apenas as crianças que na impossibilidade de obterem resposta a perguntas inquietantes que ficam em sofrimento. É fundamental que existam canais de comunicação que possam permitir às pessoas colocar perguntas e expor os seus pontos de vista, seja sobre o mundo, mas também sobre si próprios, ainda que sejam inquietantes. Qualquer assunto pode ser perguntado e conversado. Compreendo que a dificuldade possa ser grande, nomeadamente da parte da pessoa que escuta a pergunta. Normalmente porque não sabe o que responder. Semelhante à situação de quando as crianças perguntam aos pais de onde vêm os bebés? ou para onde vamos quando morremos? Mas pensem que a pessoa que está a fazer a pergunta também está em sofrimento. Principalmente quando pergunta, Como é que eu sei se sou autista?
Não se fica autista, é-se autista. E talvez seja mais adequado dizer, vamos sendo autista. Até porque a condição de Perturbação do Espectro do Autismo vai sendo diferente na sua expressão ao longo do ciclo de vida. E porque é que eu começo por aqui para responder à questão, Como é que eu sei se sou autista? Por várias razões, nomeadamente, porque consoante a situação da pessoa, poderemos ter alguém que além de uma Perturbação do Espectro do Autismo, possa também ter outras condições psiquiátricas. Ou seja, aquilo que a pessoa sente e não consegue explicar, é enquadrado dentro de uma Perturbação do Espectro do Autismo, conjuntamente com uma Perturbação de Ansiedade, ou Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção, Perturbação Obsessivo-Compulsiva, Depressão, Perturbação Bipolar, Esquizofrenia, entre outras, para falar das mais frequentes. Só aqui podemos ver que face à pergunta - Como é que eu sei se sou autista?, a resposta pode ser bastante mais complexa daquela que está à espera. E a pessoa que a vai dar também pode sentir essa mesma complexidade. E até poder vir a ter um conjunto de dúvidas e em alguns momentos poder "não fechar" o diagnóstico como se diz na gíria, o que significa dizer à pessoa que no momento não há uma indicação clara para a atribuição de determinado diagnóstico.
Para além disso, e como já se percebeu, a Perturbação do Espectro do Autismo ocorre ao longo do ciclo de vida. Ou seja, enquanto perturbação do neurodesenvolvimento, a pessoa nasce com ela e vai viver com ela toda a vida. No entanto, poderá apenas haver uma manifestação comportamental mais atípica a partir de determinado momento e como tal a pessoa obter o diagnóstico mais tarde. Em média, um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo é obtido entre os 4 e os 8 anos de idade, sendo que nas raparigas é feito sensivelmente dois anos mais tarde comparativamente aos rapazes. No entanto, ainda são várias as situações de pessoas adultas que ontem o seu diagnóstico na vida adulta, após os 20 anos de idade. E aqui há outras questões que importam ser percebidas. No caso do diagnóstico tardio, este tem a ver com o facto da pessoa apresentar um conjunto de características mais subtis. Ainda que à mesma dentro dos critérios de diagnóstico, nomeadamente na Interacção e Comunicação social, comportamentos repetitivos e interesses restritos. Mas também tem a ver com o facto da Sociedade ter uma crença rígida do que é o autismo e não sinalizar as pessoas para serem avaliadas. Julgam que não cumprem critérios para o diagnóstico, mesmo que estejamos a falar de pessoas que não são profissionais de saúde, ainda que estes não estejam isentos de erro. E no caso das situações das raparigas a situação ainda é mais catastrófica, ao ponto destas serem em média diagnosticadas dois anos mais tarde do que os rapazes.
Mas então, Como é que eu sei se sou autista? Apesar de haver situações, talvez a maioria das situações, em que o diagnóstico é feito na infância, em média entre os 4 os 8 anos de idade. Aqueles que começam por dar conta da situação costumam ser os pais ou os educadores/professores. Apesar da criança pequena já conseguir verbalizar que há algum mal estar na sua pessoa, alguma incompreensão do porquê dos outros fazerem as coisas de determinada forma. Ainda assim, são os adultos que sinalizam a situação. Como tal, é importante que a pergunta possa também ser colocada da seguinte forma - Como é que eu sei que o meu filho ou aluno é autista? Esta outra questão apesar de fundamental deixo para os meus colegas da intervenção precoce.
No entanto, continua a haver todo um conjunto de casos, nomeadamente, aqueles que são designados de autismo mais funcional que leva a que as pessoas sejam diagnosticadas mais tardiamente. Apesar de não gostar da designação autismo mais funcional, porque pode reenviar para esta noção de que há um autista mais fácil do que outro. Para além de não ser verdade, é importante saber que as pessoas com uma Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1), equivalente a esta designação de autismo mais funcional, são pessoas com níveis grandes de sofrimento psicológico.
Uma questão muito frequentemente presente e que leva a colocar frequentemente a questão - Como é que eu sei se sou autista?, é esta sensação de estranheza. Uma vez disseram-me, esta sensação de ser um quadrado num mundo cheio de circunferências. Esta estranheza é na maior parte das vezes em relação às outras pessoas. Seja pela forma de elas fazerem as coisas desta ou de outra forma. Como se as pessoas se sentissem inconformadas com o facto de os outros fazerem as coisas de uma forma diferente da sua, fora daquela lógica própria que as pessoas têm acerca das coisas e do Mundo. Porque é que as pessoas têm necessidade de se falar com tanta frequência ou estarem sistematicamente a enviar mensagens uns aos outros. E mesmo quando têm idade para compreender a situação. Até porque não se trata de uma questão de maturidade cognitiva, ainda que em algumas situações esta situação se coloque. A pessoa pode ter um perfil cognitivo médio ou até mesmo superior e continuar a colocar esta questão, até mesmo de uma forma mais insistente.
Por vezes perguntam-me, "Mas porque é que estás quase sempre a falar deste tipo de autismo, o mais funcional?". Porque felizmente, as outras situações, em que as evidências comportamentais que se observam nas crianças, jovens ou adultos são mais evidentes e normalmente o diagnóstico é feito mais precocemente. Estas outras situações acabam por não ser mais fáceis de identificar e de serem encaminhadas para uma avaliação. Mas volto a sublinhar que o sofrimento psicológico é bastante grande. Além do facto da situação clinica da pessoa vir a piorar, até porque não foi diagnosticada e a pessoa não recebeu intervenção.
E quando as pessoas já tiveram um outro diagnóstico? Por exemplo, de Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção, e ainda assim continuam a colocar a questão, Como é que eu sei se sou autista? É importante dizer que no Espectro do Autismo há uma probabilidade de existirem outras condições psiquiátricas associadas. Como tal, uma questões que pode ajudar a pessoa a pensar na hipótese de poder ser do Espectro do Autismo é o facto de apesar de ter o diagnóstico de PHDA ou outro. Se continuar a sentir que esse enquadramento/diagnóstico não a ajuda a perceber as coisas, continua a sentir essa mesma estranheza em relação ao Mundo e aos outros, então é importante de poder fazer esse mesmo despiste. Até mesmo os próprios profissionais de saúde que acompanham as pessoas com um determinado diagnóstico, seja de PHDA, Ansiedade ou Depressão, referem alguma estranheza no facto da pessoa continuar resistente à intervenção, seja psicológica mass também farmacológica. Por exemplo, na depressão, a pessoa continua a manter um quadro clinico continuado, mesmo com a intervenção adequada. E o mesmo para as outras condições. Muitas vezes a pessoa consegue racionalmente pensar em conjunto com o terapeuta sobre a situação mas depois parece ter uma maior dificuldade para a generalização a outras situações. E quando situações novas acontecem, facto que é frequente na vida de todos nós, parece que a pessoa volta a um estado inicial. E com alguma frequência acaba por abandonar a terapia, por sentir que a mesma não está a ter efeitos sobre as suas queixas.
Esta sensação de constante incompreensão, seja em relação aos outros e ao Mundo. Assim como uma sensação de não se encaixar, mesmo que em algumas situações o possa desejar e tentar. Uma situação constante de altos e baixos que parece não ter uma qualquer compreensão. Mas também uma visão própria, singular e idiossincrática do Mundo. Um ter de forçar-se a fazer coisas que a maioria das pessoas parecem fazer com maior facilidade e algumas dessas coisas não desejar ou não ter prazer alguma em as realizar. Um interesse intenso em determinados assuntos, tenham ou não uma coerência e adaptação à idade. Uma noção muito marcada de justiça e simetria sobre as coisas na vida. E na maioria das situações sentem que têm de dizer a verdade sobre as coisas mesmo que isso lhes possa trazer consequências negativas a si próprio. Se associado a estas questões houverem hipersensibilidades ou hipossensibilidades sensoriais aos mais variados estímulos sensorial, sejam táctil, visual ou auditivo, mas também interesses sensoriais na exploração destes mesmos estímulos. Então a probabilidade de se tratar de uma Perturbação do Espectro do Autismo é maior. Em qualquer das situações é fundamental que possa fazer um despiste com um profissional de saúde.
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