Robertices é uma palavra inventada, não existe. Na verdade, o que eu quero dizer é que para além de ter aprendido a brincar aos fantoches, desde cedo que descobri que havia os Robertos. Estes são descendentes da grande família de Polichinelos mas, ao contrário dos seus parentes europeus, não tem um tipo físico determinado, o que justifica a generalização do termo Robertos a todos os fantoches de luva. E em Portugal chamam-se Robertos aos fantoches de luva e Roberto é também o protagonista da maioria das suas histórias. E se por um lado dá imenso jeito com apenas uma luva podermos fazer de conta que temos várias personagens, principalmente quando brincamos sozinhos. O certo é que também é fundamental que cada uma destas personagens possa ter características físicas e de personalidade próprias para que os espectadores possam compreender melhor. E porque me fui lembrar desta "fantochada"? Porque a forma como cada um de nós representa mentalmente o Autismo tem muito impacto na forma como falamos ou escrevemos acerca do autismo, assim como na nossa atitude perante os autistas. E isto acontece com todos, individual ou colectivamente, nomeadamente com os órgãos de comunicação social. E se acontece com todos, porquê falar destes? Pela dimensão do alcance que a sua informação tem, para além de influenciar directamente a percepção e a criação de opinião que cada pessoa faz da realidade.
Os órgãos de comunicação social são um elemento poderoso na divulgação e formação da opinião na nossa sociedade. A seleção dos conteúdos veiculados nos media, o tratamento dado à informação, às vozes e mensagens que são amplificadas ou atenuadas constituem
um elemento a partir do qual os consumidores vão moldando a sua própria visão do mundo: nossas atitudes, crenças, opiniões, ideologias, etc.
A concepção social e as ideias que se instalam no imaginário colectivo sobre um diagnóstico específico são configurados por meio de um cocktail de fontes de informação compostas pelo conhecimento possível de casos específicos; conversas informais; leituras rigorosas mais ou menos esporádicas e, é claro, os media, elemento que, mesmo de uma forma pouco consciente para nós, determina uma parte significativa de nossa forma de compreender e perceber a realidade que nos rodeia.
A Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) é um diagnóstico especialmente exposto à
influência dos media por diferentes razões. Em primeiro lugar, os próprios traços que caracterizam a PEA dificultam a inclusão social de pessoas que a apresentam e até mesmo despertam o interesse da sociedade sobre si. Além disso, frequentemente apresentam dificuldades no desenvolvimento da linguagem oral. Em segundo lugar, é um diagnóstico cuja prevalência aumentou exponencialmente durante nos últimos anos, o que causou um aumento na sua presença de forma significativa nos media. Finalmente, é um diagnóstico que aparece recorrentemente em produtos de consumo cultural de massa, como filmes, séries de TV e livros que, provavelmente devido às características do próprio diagnóstico, a PEA é considera uma condição que gera fascínio ou até mesmo que tem um certo carácter enigmático.
A investigação no campo dos Estudos da Deficiência sugere que as percepções sociais das pessoas com deficiência são formadas e perpetuadas pelos media e muitas vezes contextualizadas dentro de um modelo de déficit médico, resultando num evitamento crítico que se estende por toda a sociedade num processo de auto-realização de medo e ignorância. Há trabalhos de investigação que destacam como estamos constantemente sujeitos a representações negativas, muitas vezes estereotipadas, da deficiência como uma tragédia digna de pena. É essa representação capacitadora das pessoas com deficiência preservada nos media que, consequentemente, molda a compreensão e as atitudes da sociedade em relação à deficiência.
E são várias as formas da deficiência ser olhada. Por exemplo, de acordo com três modelos de deficiência: o modelo tradicional, em que a deficiência é olhada como um fardo para a família, as capacidades de pessoas diagnosticadas ou a deficiência está relacionada a aspectos como crime e vandalismo; o modelo reabilitador, no qual a deficiência é concebida
como um rótulo negativo, exigindo atenção especializada de profissionais de saúde, preferencialmente em contextos segregados e críticas à experiências inclusivas; e o modelo social, que destaca a possibilidade de realização uma vida independente e normalizada, a necessidade de garantir conformidade dos direitos das pessoas com deficiência e inclui notícias que com exemplos de autoaperfeiçoamento.
Ao longo dos anos temos assistido a um crescendo de noticias sobre o autismo nos órgãos de comunicação social. Sejam histórias de vida, relacionado normalmente com determinadas dificuldades que uma família está a passar devido a um dos membros, normalmente uma criança, ter um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas também em situações em que uma pessoa autista tem um determinado interesse numa actividade, e que normalmente descrevem como dom. Por vezes, estas noticias são de situações que ocorrem no nosso pais, mas também a nível internacional, facto que é habitual em outro tipo de noticias e tópicos abordados. Em Portugal, e que seja do meu conhecimento, não existe nenhum estudo que tenha feito uma investigação acerca da representação que a comunicação social faz do autismo. No entanto, este tipo de trabalho já tem sido realizado em outros países. E apesar das diferenças culturais e outras que devem ser tidas em conta, os resultados costumam ser semelhantes. As grandes categorias de noticias que costumam ser feitas acerca do autismo são: as vozes silenciadas, o peso do autismo, sensacionalismo, uso errado ou mau uso da designação autismo ou autista.
Outro tipo de noticias tem a ver com o reportar de situações ocorridas, seja a família que foi retirada do avião porque a criança autista se recusava a usar máscara, ou a família que foi retirado do espectáculo porque a criança autista não conseguia controlar o seu comportamento. Ou então, a noticia da mãe que terá morto o seu filho adolescente autista, da escola em que os pais da turma X se reuniram para dizer que o aluno autista não poderia continuar naquela turma devido aos comportamentos agressivos reiterados.
Depois também assistimos a outro tipo de noticias em que o tópico abordado nada tem a ver com o Autismo, mas em que a palavra autismo ou autista é usada. E normalmente, o contexto em que é feito é negativo. Por exemplo, o partido politico que está no governo e que adopta uma atitude autista face à oposição, o treinador que não ouve os adeptos e parece autista na escolha repetida da sua táctica, do comentador Y que parece autista porque nunca compreende aquilo que comenta no seu programa, etc.
Mas também há a categoria mais relacionada com a intersecção do tema do autismo com a ciência ou a descoberta de alguma intervenção. No caso da primeira situação, relacionada com descobertas cientificas, é muito frequente existirem noticias que reportam a possibilidade de uma cura com a nova descoberta, ou então da remissão de determinados comportamentos. E quando noticiam situações relacionadas com a intervenção, para além de não verificarem se a mesma intervenção é ou não avaliada pela comunidade cientifica como cientificamente válida. Apontam a referida intervenção como algo que vai poder curar a pessoa autista ou remover determinado conjunto de comportamentos. Embora tenha havido um aumento da investigação feita em relação ao autismo, nomeadamente ao longo do ciclo de vida e não somente em crianças, e em outras áreas para além da genética, e ter havido um corresponde no número de artigos científicos publicados. No entanto, as descobertas emergentes importantes não são necessariamente reproduzidas na comunicação social a nível geral, e ficam mais frequentemente restritas a blogs ou sites científicos.
Chegado a este ponto gostaria de sublinhar que este tipo de post não tem como objectivo denegrir a comunicação social ou aponta-la como bode expiatório relativamente ao estigma e estereótipos existentes em relação ao autismo. Se o objectivo fosse fazer uma caça às bruxas estaríamos todos lá dentro, inclusive nós profissionais de saúde, pais de autistas, professores, etc. Os jornalistas não são especialistas em autismo. Assim como não o são em Acidente de Trabalho. E durante muitos anos, as noticias que reportavam situações de acidentes de trabalho forneciam quase sempre o factor erro humano como responsável da situação, além de outra informação menos adequada. Foi preciso uma iniciativa conjunta da actual Autoridade para as Condições do Trabalho, investigadores da área e profissionais de SHST, para que os órgãos de comunicação social pudessem ter um guião de referência para quando noticiassem uma qualquer situação relacionada com acidentes de trabalho. E o mesmo tem sido feito para outras áreas, nomeadamente ligado ao grupo LGBT+, minorias étnicas, etc. E porquê? Pela dimensão do alcance que a sua informação tem, para além de influenciar directamente a percepção e a criação de opinião que cada pessoa faz da realidade. No caso dos acidentes de trabalho foi uma forma de contribuir para a conscientização dos riscos e perigos envolvidos e para a diminuição das ocorrências. No casos dos grupos LGBT+ e minorias étnicas, como forma de não continuar a perpetuar estereótipos e fomentar um discurso enviesado e que contribui para o racismo.
Agora trata-se de procurar fazer a mesma coisa mas para o Autismo. Não é uma novidade, e já houve outros países que através de organizações que trabalham com autistas que têm desenvolvido este tipo de esforços e iniciativas. No presente momento nós - Autismo no Adulto, tem estado a desenvolver um guião, com base nas orientações existentes para criar um documento que possa servir de orientação para a comunicação social. Este não pretende ser um guião universal, nem acabado. Até porque o desenvolvimento do conhecimento acerca do autismo e em torno de tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas com esta condição vai sendo diferente ao longo do tempo. E este tipo de guião precisa de reflectir precisamente essa realidade.
Os media, tais como a televisão, rádio, jornais e a internet são importantes para mediar as atitudes das pessoas e as crenças em relação a pessoas com deficiência ou aquelas diagnosticadas como tendo uma perturbação mental. Além disso, muitas vezes é o retrato dos media, ao invés da experiência directa, que molda as crenças que as pessoas têm sobre tais condições. Este efeito é saliente quando a experiência directa é limitada, e a principal fonte de informação é da responsabilidade da comunicação social de grandes massas. É de sublinhar, embora ocasionalmente que há noticias que fazem um enquadramento positivo de pessoas portadoras de deficiência ou com uma perturbação mental, ainda que outras tantas a comunicação social seja condenada por apresentar informações falsas e sensacionalistas. Por exemplo, notícias sobre pessoas com problemas de saúde mental que foram criticados por fornecer relatos excessivamente positivos e irrealistas, ou serem imprecisos e reforçar estereótipos negativos.
A voz da pessoa autista é frequentemente silenciada, e predominantemente, o foco é colocado no relato de terceiros sobre a pessoa autista. As notícias geralmente surgem das perspectivas de pais, académicos, profissionais de saúde e jornalistas, em vez de pessoas autistas. Além disso, os adultos autistas são raramente referido, e o autismo é apresentado como uma condição que afecta unicamente crianças. Como consequência, o autismo parece infantilizado. Por exemplo, quantas vezes histórias de pessoas autistas autistas com mais de 20 anos são descritas com títulos como "Menino com um dom raro"?
Ou então são os discursos sobre o autismo apresentado como uma angustia ou uma montanha de sofrimento, e as pessoas são designadas como sendo vitimas desta condição: ‘‘… uma em cada 100 pessoas sofre de perturbação do espectro do autismo.", ou ‘‘As vítimas têm dificuldade em comunicar ideias, em socializar e controlar a sua imaginação. ‘‘As salas de aula grandes da escola moderna compreensiva não é amiga das vitimas do autismo. O peso do autismo também é mencionado no discurso dualista do autismo que apresenta as pessoas autistas como sendo vulnerável e perigosa. Por exemplo, a pessoa com autismo Y foi detida pela policia antes de cometer um acto terrorista, sendo que a pessoa tem
Síndrome de Asperger - uma forma de autismo que torna a pessoa mais vulnerável à doutrinação.
Nestes relatos, a designação de autismo é usado para explicar a vulnerabilidade, instabilidade e o potencial para ser explorado (ao invés de algumas outras facetas da sua pessoa). Esses discursos potencialmente desumanizam e marginalizam o autismo e os as pessoas autistas. Tal desumanização também é evidente em outras relatos de como os pessoas autistas "... desejam fazer parte da raça humana, mas acham difícil preencher a lacuna entre o mundo deles e o nosso."
Alguns artigos aludem à aparente demonstração de traços comportamentais, ou envolvimento em comportamentos, que podem ser indicativo de autismo, mesmo que não seja conhecido se essas pessoas poderiam ser (ou foram) diagnosticadas como
tendo autismo. Por exemplo, é plausível ouvir alguém referir que assistiu a um programa na TV sobre Síndrome de Asperger, e aquilo que foi descrito é exactamente semelhante aos problemas que a pessoa sente no seu marido, que incluíam uma incapacidade para demonstrar qualquer emoção e uma aparente falta de interesse nos problemas da esposa, para além de nunca lhe ter dito que a amava, apesar desta ter a certeza do contrário. E que além dessas características ele sempre foram muito inteligente, um professor, e com comportamentos de hiperfoco, tornando-se num especialista de assunto em assunto. Esses relatos, apesar de poderem caracterizar algumas questões de algumas pessoas que tenha um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, têm certamente o potencial de perpetuar uma sensação sensacionalista, não necessariamente precisa, estereótipada das pessoas autistas. Da mesma forma que noticias que descrevem a capacidade de um menino de 7 anos como alguém que memorizou todas as 600 páginas do Corão, pode sugerir que repetir textos inteiros de forma literal é uma situação na maioria dos casos explicado pelo autismo.
O diagnóstico de autismo, portanto, parece ser mal utilizado para validar comportamentos que parecem divergir do esperado das normas sociais. Na verdade, quando as pessoas autistas são incluídos nas entrevistas (embora raramente), é construído com alguma frequência uma tipologia de alguém extraordinário ao invés de uma pessoa comum, mesmo quando estes referem que apenas querem mostrar às pessoas com autismo de é que possível viverem uma vida normal e que normalmente não são aquilo que as pessoas pensam de si. A capacidade das pessoas autistas em alcançar determinados feitos, é, portanto, apresentado como sendo inesperado, mas inspirador. Esses relatos parecem idealizar a pessoa autista, de modo que as habilidades são transformadas em habilidades extraordinárias, apesar ou porque é autista.
As preferências e julgamentos da capacidade estão na raiz de muitas regras de comportamento e costumes. As expectativas da capacidade (i.e., o estágio do desejo) frequentemente transforma-se numa forma de capacitação onde uma dada habilidade é vista como essencial (i.e., o estágio de necessidade). Ou seja, aquilo que gostaríamos de que o outro fizesse ou fosse, passa a ser aquilo que atribuímos como sendo uma necessidade a ser verificada. O termo capacitismo evoluiu dos movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência nos EUA e Reino Unido durante as décadas de 1960 e 1970. O capacitismo permite destacar a deficiência que as pessoas vivenciam, cujas habilidades não se enquadram na preferência cultural pelo funcionamento da habilidade normativa típica da espécie e que, portanto, são rotuladas como "deficientes", como incapazes o suficiente, como incapaz da maneira certa.
Essa imagem não é apenas negativa e focada na deficiência, mas também fornece uma representação distorcida e incorrecta do autismo e da deficiência em geral, servindo para manter e reproduzir uma hierarquia social dominante. É esta ortodoxia prevalecente de opressão social e segregação que tanto produz quanto reforça estereótipos e preconceitos incapacitantes, uma ideologia que então é absorvida como um valor social, enraizada nas expectativas sociais prevalecentes e erroneamente vista e reconhecida como uma cultura colectiva verdadeira ou um facto.
Da mesma forma, essas interpretações negativas reforçadas, de preconceito, em relação às pessoas com deficiência, uma estrutura de classificação forçada, leva ao reforço contínuo de um estigma cultural destrutivo e hostilidade, enquadrando a deficiência como uma categoria inferior. Como tal, esta imagem destrutiva aplicada dentro de uma cultura e reproduzida nos media, não só tem efeitos prejudiciais a longo prazo nas atitudes da sociedade em relação à deficiência, um processo de socialização, mas também indica que as pessoas autistas não têm direitos iguais, uma intolerância cultural e preferência social que reforça e gera profundas barreiras sociais de isolamento e exclusão cultural.
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