O Eu está, antes de tudo, situado dentro de um corpo.
"Tudo o que eu fazia, desde o segurar os dois dedos juntos para esgravatar os meus dedos, tinha um significado, geralmente a ver com a ideia de me tranquilizar e de que eu estava em controlo. Isso, e que ninguém me poderia alcançar, onde quer que eu estivesse."
Quando falamos em Perturbação do Espectro do Autismo, ou autismo, temos tendência a falar mais da interacção e comunicação social, e das dificuldades existentes nesta área. E como em muitas outras condições temos tendência a esquecer o corpo. Este não é apenas uma mera estrutura onde assenta o biológico e o psicológico, numa dualidade cartesiana. E curiosamente, estes últimos anos de investigação no autismo tem mostrado haver uma maior certeza da ligação da Perturbação do Espectro do Autismo às questões relacionadas com o corpo. Seja em relação às questões da obesidade, mas também em relação às perturbações da conduta alimentar (e.g., anorexia). As distorções e percepções erradas do corpo são uma parte central de diversas condições psiquiátricas, tais como, a perturbação dismórfica corporal e perturbações da conduta alimentares, bem como outros condições, como asomotagnosia. Ao pensar na representação corporal é importante notar que nosso corpo tem um duplo carácter fundamental. Por um lado, o nosso corpo é a origem de nossa primeira perspectiva enquanto pessoa, a sede de nossas sensações, e uma característica omnipresente do nosso campo perceptivo. Nesse sentido, temos conhecimento imediato do nosso corpo interno como um objecto de percepção directa. Por outro lado, nosso corpo é um objecto físico como qualquer outro, sujeito à gravidade e afectadas por forças externas como outros objectos. Nesse sentido, podemos reflectir cognitivamente no nosso corpo de fora como um objecto físico ou biológico.
"Quando alguém que procurava interagir comigo moveu o seu braço esquerdo, eu movi o meu braço direito. Quando eles mudaram o seu braço direito, eu movi o meu braço esquerdo e assim por diante. Eu sabia durante todo aquele tempo que o que eu estava a fazer era um erro, mas não me importava e não importa o número de vezes que o disse a mim mesmo coisas como, o braço direito dela é igual ao meu braço esquerdo e eu não podia transferir o conhecimento para o movimento. Depois de algumas semanas de prática bilateral, descobri que eu poderia conseguir se eu praticasse aqueles nossos passos de dança."
Mas se pensarmos naquilo que são algumas das características observadas no Espectro do Autismo, sabemos que as questões da sensorialidade estão sobejamente presentes. Adicionalmente, as questões relacionadas com a consciência interoceptiva é sabida como apresentando algum compromisso no autismo. E tendo em conta que esta é determinante para a experiência subjectiva dos sentimentos e está intimamente ligada à homeostase na medida em que permite aos organismos adaptarem-se às mudanças de circunstâncias sentindo as alterações do seu meio interno. Parece-nos fundamental que a compreensão das pessoas com uma Perturbação do Espectro do Autismo, mas também a intervenção com estas pessoas, possam contemplar a importância do corpo. Ao fundamentar o Eu no corpo, a psicologia tomou o corpo como ponto de partida para uma ciência do Eu, e passou a possibilitar uma superação do dualismo cartesiano. Uma dimensão fundamental do Eu corporal é o sentido de propriedade corporal que se refere ao status perceptivo especial do próprio corpo, a sensação de que o "meu corpo" pertence a mim, o que faz com que as sensações corporais pareçam únicas para si mesmos. O nosso corpo é um componente essencial do nosso sentido de si mesmo e o núcleo de nossa identidade como um indivíduo. O Eu é o que unifica as nossas experiências ao longo do tempo e do espaço. Como seres humanos individuais, cada um dos nossos Eus mesmos é diferente – vemos o mundo de uma perspectiva única; temos tanto um sentido de propriedade sobre as nossas experiências e um sentido de autoria sobre as nossas ações; pensamos que certas características se aplicam ou não se aplicam a nós mesmos; lembramo-nos de nossas histórias pessoais únicas; e comportamos de maneiras que outras pessoas não o fazem. Muito do Eu é capturado pelo elemento subjetivo da experiência momentânea e é, portanto, pré-reflexivo. Ele molda e é moldado pela percepção e pela ação. É importante ressaltar que somos um dos muitos outros Eus, com quem temos de regular as interações. Entender a experiência e, assim, as necessidades das outras pessoas é central para as sociedades. Incentiva à existência de interações sociais positivas recíprocas. No entanto, quando as pessoas não se encaixam imediatamente com a nossa expectativas para a vida mental dos outros, somos atingidos com um sentimento de desconforto social. Se eu estou a procurar comunicar com alguém, eu posso usar a minha compreensão de mim mesmo para modelar como você representa a si mesmo. Se o meu modelo está errado, então as
minhas expectativas para o seu comportamento serão imprecisas, e os seus comportamentos parecerão estranhos. No entanto, se cada um de nós modelar correctamente o outro, podemos compartilhar melhor as nossas experiências e conhecimentos.
Quando uma pessoa neurotípica fala com uma pessoa autista, muitas vezes ambos têm um modelo incorreto do outro. A pessoa neurotípica prevê as reações de outra pessoa neurotípica (em consonância com a maioria de sua experiência passada) e a pessoa do Espectro do Autismo pode ter dificuldade em modelar a mente do outro de acordo com sua condição. A percepção da propriedade corporal e da auto e hetero relação são fundamentais para o desenvolvimento da autoconsciência, imitação e empatia. Conceitos esses que se vêm afectados na Perturbação do Espectro do Autismo.
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