Este ano comemoramos os 50 anos do 25 de Abril, sabes? perguntava-lhe a mãe. Isilda (nome fictício), é a mãe da Carolina (nome fictício). A Isilda tem 67 anos, nasceu em 1957. Tinha 17 anos quando se deu a revolução de Abril de 1974. Carolina vai agora fazer 49 em outubro. É condicional, como ela própria gosta de referir. Aquilo ficou-lhe marcado na sua memória, não ter podido entrar para a escola em setembro com os outros miúdos e miúdas porque fazia os 6 anos em outubro. Era condicional. Foi uma injustiça, foi o que foi? diz Carolina. Ainda para mais eu já sabia ler e até escrever algumas coisas! acrescenta. Não sei para que é que serviu o 25 de Abril? pergunta zangada. Gritavam liberdade, mas depois não me deixaram ir para a escola! partilha.
Demorei até fazer as pazes com Abril, refere. Primeiro tive de aprender a fazer as pazes. E também tive de aprender para que serve e porque é importante fazer as pazes, e isso não foi fácil, mesmo para mim que já sabia ler e até escrever! remata.
Mas não consegui fazer as pazes com tudo ou com todos. Mas aprendi ao longo do tempo que não tenho de o fazer, até porque sou livre! diz. Uma das coisas que não consegui tem a ver com as questões sensoriais. Nunca suportei certos cheiros. Tenho uma hipersensibilidade olfactiva. Odeio o cheiro a cravos. E por isso a foto que vêm é da minha mão e pulso a erguer uma rosa vermelha, e não um cravo vermelho. O cravo tatuei-o no meu pulso. Eu mesma. Até porque nunca tolerei que me tocassem. Ainda experimentei, mas não consegui. Então aprendi a tatuar e tatuei-me a mim própria. É suposto ser uma tatuagem de um cravo, ainda que algumas pessoas digam que parece uma rosa! Quero lá saber do que eles dizem. Eles também nunca quiseram saber daquilo que eu vou dizendo! acrescenta.
A minha mãe viveu coisas que eu nunca vivi, e talvez por isso esteja mais contente do que eu em relação aos 50 anos do 25 de Abril. Eu nunca tive de esperar por ninguém tal como a minha mãe esperou pelo meu pai quando este foi para a guerra! diz. E ainda hoje parece que o espera! Acho que ele morreu lá. A minha mãe nunca me quis contar a história, não sei porquê? questiona retoricamente. Acho que ela pensa que eu não sei lidar com certas coisas. Pelo menos é o que ela diz, continua. Eu não lhe quero dizer que sei o que é que se passou lá na guerra. As guerras são coisas que eu percebo. O que eu não percebo é porque é que os outros não percebem que eu possa ter interesse nesse tema e até saiba muito sobre o tema? pergunta. E ainda mais ficarem a pensar que eu sou perigosa e pedirem aos filhos para não se aproximarem de mim quando andávamos na escola?! Ainda que essa ideia até tenha gostado porque assim não tinha que me afastar deles quando já não tinha paciência para os ouvir, refere.
Mas eu gostava que me pudessem explicar que Abril é que existe para as pessoas autistas? Que liberdade é que as pessoas autistas têm direito? De falar o que quiserem? Não me parece! De fazerem o que querem? Também não me parece! De sermos quem somos? Também não! Já me disseram várias vezes que eu não sou nada autista e que até devia ter vergonha de o dizer! afirma já com a voz cansada. Conseguem explicar-me isso? volta a perguntar depois de um novo folego.
Porque se não o conseguem então é porque Abril ainda não chegou! E por isso é que esse mês ainda não existe para mim. Para mim há 11 e não 12 meses! Além do cheiro dos cravos esta é a outra coisa que ainda não consegui ultrapassar, mas não é por isso que deixo de descer a Avenida de Liberdade e gritar - Liberdade sim, Fascismo nunca mais! Autismo sim, Mudar nunca mais!
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