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Pôr as mãos na massa

É uma expressão como muitas outras, e que apesar de poder não ser compreendida por alguns, na verdade representa uma parte da cultura de um povo. E se pensarmos na cultura constituída por todo aquele complexo que inclui o conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes, hábitos e capacidades adquiridas pelo Homem como membro de uma Sociedade. Qual a representação cultural que existe do autismo?


Qual a representação que temos do autismo? E como é que ele vai sendo representado ao longo dos anos? E o que é que isso informa ou pode dizer da forma como nós todos o pensamos? E de que forma é que as próprias pessoas autistas têm e continuam a participar na construção da sua representação? Qual a narrativa da representação do autismo e que todos nós de uma forma ou de outra continuamos a perpetuar? A grande maioria dos trabalhos científicos que são feitos em relação ao autismo são de índole médica, psicológica ou social. São muito poucas as outras áreas que procuram desenvolver trabalhos em que procuram olhar para o autismo. Por exemplo, não vemos nenhum trabalho com determinada extensão relevante a debruçar-se sobre a representação cultural do autismo. E apesar de termos a informação de que 1% da população mundial apresenta um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Ainda assim, não temos nenhum trabalho que demonstre evidência dessa representação cultural do autismo. Por exemplo, o facto de ao longo destes quase 80 anos após o primeiro diagnóstico de autismo, ter havido um tão grande número de transformações dos nomes atribuídos ao autismo. Desde psicose infantil, perturbação desintegrativa do desenvolvimento, síndrome de asperger, autismo de alto funcionamento e agora perturbação do espectro do autismo. O facto destes nomes todos precisa de ser compreendido também à luz da representação que o próprio autismo foi tendo em nós. E não nos ficarmos por meras operações cosméticas ao nível dos manuais de diagnóstico e trabalhos científicos produzidos pela classe médica e psicológica.


O estudo do autismo envolve questões chave que têm sido centrais em grande parte da filosofia e teoria cultural. As exigências de presença, ausência e duração, de fala e silêncio, de deficiências / competências e excepcionalidade, desvio e normalidade, do sujeito unitário e do lugar da razão cognitiva e da percepção. Mais persistentemente, o autismo é figurado na narrativa como uma ideia que, em termos de uma sensação de falta ou ausência, pode reflectir sobre um mundo que é representado como ortodoxo ou padrão. Aquilo a que os próprios autistas costumam chamar de neurotípico. Mas se formos pensar acerca da representação que o autismo foi e continua a ter na literatura, órgãos de comunicação social, televisão e cinema. Ficamos com uma ideia nada representativo daquilo que é a realidade vivida pela pessoa autista. O próprio facto de ainda hoje se discutir a designação pessoa com autismo ou pessoa autista, é designativo da importância de reflectir sobre tudo isto. E de preferência com as próprias pessoas autistas envolvidas. Já chega de reflectir sobre o autismo sem os próprios estarem envolvidos.


A própria comunidade autista e muito bem tem insistido na importância de se reflectir acerca da existência de uma Sociedade Capacitista. E que em muito à boleia do modelo biomédico foi alicerçando um discurso de competências ou incapacidades, de deficit, do facto do corpo e da mente da pessoa autista não ser capaz de determinado conjunto de comportamentos e que como tal necessita de ser capacitado para tal. Isto já não falando de todo um discurso que foi existindo e que ainda vai tendo nos dias de hoje alguns picos de existência em relação à cura do autismo. Na verdade, após estes anos todos, ainda continuamos em muito com um discurso de normalidade versus incapacidade. E não é de todo por acaso que ainda hoje continuamos a verificar que muitas pessoas autistas e de diferentes idades procura esconder ou até mesmo camuflar muitos dos seus comportamentos, ainda que sofram um enorme prejuízo em termos da sua saúde física e mental. E se pensarmos no modelo biomédico acerca da incapacidade, o que é que torna determinado comportamento uma incapacidade? E em relação à intensidade deste comportamento, como é que sabemos quando é que o mesmo se torna incapacitante? Por exemplo, quantos comportamentos são exibidos por pessoas autistas e que podem perfeitamente ser integrados num continuum? Por exemplo, a necessidade de previsibilidade muitas vezes sublinhada como estando presente na pessoa autista. Não está também ela presente na vida das pessoas neurotipicas? E não é igualmente desejada? Porquê da diferença? E quem a decide? E não, não estou com isto a dizer que assim sendo todos podemos ser autistas!! E quem ao longo destes anos têm representado o autismo? E o que é que isso quererá dizer acerca da representação que se tem do autismo? E a dificuldade que se tem, mesmo nos dias de hoje em acreditar na palavra das associações de autistas representativos do autismo? Ou a escassez de representantes políticos e outros que sejam autistas? E mesmo aqueles que sejam não verbais. Porque não têm eles uma voz própria? Sempre que me desloco a qualquer evento cientifico, social ou público em que o tema do autismo está presente, continuo ainda a verificar a ausência ou escassa presença de pessoas autistas que não só se representem mas que também possam representar o autismo. Porquê? Precisamos de escutar a narrativa das pessoas autistas, a forma como as próprias se representam. Não propriamente para as diagnosticar ou classificar, mas para as compreender. E até aqui, quando olhamos para a narrativa de algumas pessoas autistas, nomeadamente até ao nível da literatura, não deixamos de reparar que a mesma passa por uma representação de ultrapassar os obstáculos e de superação, ou até em alguns casos de remissão ou cura, etc. Interessante podermos pensar que a representação existente do autista está suficientemente impregnada na Sociedade, ao ponto de algumas pessoas autistas terem elas próprias um discurso capacitista. E o que dizer das narrativas de muitos pais e mães de crianças, jovens e adultos autistas? Desde a designação frequentemente usada de "anjos azuis", passando por títulos "como é que eu salvei o meu filho do autismo". A reflexão acerca destas e de ouras representações acerca do autismo não se prende com o encontrar os culpados do que quer que seja. Mas trata-se sim de podermos fazer um caminho conjunto sobre a construção de uma representação que seja feita principalmente pelos próprios.


Do ponto de vista clínico, o autismo é amplamente entendido como uma perturbação do ser, em que as pessoas falham em virtude da sua condição de cumprir o direito de nascença de desenvolver, divulgar, e a procura de uma identidade individual. A presença de pessoas autistas assim, constitui uma espécie de escândalo numa cultura onde a pessoa na procura do Eu é virtualmente equiparado ao que nos torna humanos.


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