"- Será normal ela chorar assim tanto?", pergunta o pai. "Vê-se logo que nunca tiveste um bebé!", responde a mãe. "- É tão difícil de conseguir que ela coma alguma coisa!", desabafa a mãe. "- Não te preocupes, a minha irmã também foi assim até aos 10 anos e depois passou!", diz o pai. "- Não achas que a nossa filha é muito tímida?", pergunta a mãe. "- Nem por isso. Ela é muito parecida comigo, mais sossegada. Isso até é positivo, não achas?", responde o pai. "- Já viste que ela tem mais dificuldade em brincar com as outras crianças?", pergunta o pai. "- Não acho, ela até brinca com as primas cada vez que elas vêm cá a casa!", responde a mãe. "- Porque será que ela fica a alinhar as bonecas sempre daquela maneira?", pergunta o pai. "- Porque é assim que as raparigas brincam!", responde mãe. "- Não achas que ela está cada vez mais ansiosa e com mais coisas?", pergunta o pai. "- Deixa- te dessas ansiedades. Está sempre a ver ansiedade em tudo. Não vês que a rapariga está na adolescência!?", responde a mãe. "Nunca lhe conheci nenhum namorado. Está sempre enfiada com a outra amiga no quarto!", desabafa o pai. "- Pelo menos tem uma amiga, deixa-a em paz!", diz a mãe. "- Não achas que com esta idade ela já devia pensar em casar?", pergunta o pai. "- As mulheres não são todas iguais, e os tempos são outros!", diz-lhe a mãe. "- O que é que este psiquiatra lhe disse? Conseguiste falar com ele na consulta?", perguntou-lhe o pai. "- O mesmo que os outros psiquiatras e psicólogos todos. Que é uma ansiedade social.", diz-lhe a mãe.
A filha deste casal hoje é uma adulta de 29 anos. Vai fazer trinta no final do ano. Na sua tentativa de ser alguém na vida, como sempre ouviu dizer, foi para a Universidade após terminar o Ensino Secundário. Demorou mais um ano do que era esperado. No 10º ano sentiu uma grande dificuldade quando teve de mudar de estabelecimento de ensino. Até então tinha estado sempre na mesma instituição. Já se conheciam todos, ainda que nunca tivesse feito grandes amizades com os colegas. Não se conseguiu integrar bem na escola para onde mudou. Entretanto também começou a ser vitima de perseguição por parte de uns colegas. Nunca se percebeu muito bem o que se terá passado. Suspeita-se de bullying, mas ela nunca se terá queixado de nenhuma situação dessas. Diziam que andava com umas certas companhias quando saia da escola mas também ninguém, nem os pais lhe conheciam essas relações. A sua melhor amiga desde sempre pensa que ela possa ter sido abusada sexualmente. Mas o certo é que nunca se ficou a saber o que se tinha passado. Ela começou a ficar cada vez mais ansiosa, e começou a dizer aos pais que não queria ir para a escola. Como os pais não sabiam o que fazer, procuraram muda-la de escola. No final do 1º período mudou para outra escola e as coisas acalmaram. Terminou o Ensino Secundário com boa média, apesar de ter sentido um pico de ansiedade grande na altura dos exames.
Entrou para a Universidade. Entrou primeiro para Economia. Como ficou a estudar mais longe de casa, os transportes era uma grande dificuldade para se conseguir organizar. Começou a não conseguir ir a algumas aulas. E a seguir sentiu que estava a perder o fio condutor do curso. No meio do 2º semestre do 1º ano acabou por desistir. Voltou no ano seguinte para tentar. A turma já não era a mesma. Ainda que não tivesse feito nenhuma amizade, tinha conseguido contactar com algumas colegas para os trabalhos de grupo. Mas agora deixou de ter esses contactos também. E durante o período em que não foi assim aulas não foi mantendo contacto com algumas delas. Nesse 2º ano não conseguiu fazer mais do que quatro unidades curriculares. Começou a ficar mais e mais ansiosa nos momentos das avaliações e houve dois exames a que não compareceu. Como sentia que estava a gastar dinheiro desnecessário aos pais quis sair da universidade. Os pais insistiram e ela acedeu. Mas não sabia para que curso haveria de ir. Foi a umas consultas de psicologia mas ao fim de três meses acabou por deixar porque não se sentia compreendida na sua indecisão. Para ela apenas lhe fazia sentido as coisas relacionadas com a Economia.
Ela sempre tentou ser normal e com isso procurar enquadrar-se. Até porque aquilo que foi aprendendo ao longo da infância é de que as pessoas valorizavam essa normalidade. Procurou estar perto das pessoas. Junto a elas mas sem interagir necessariamente. Se lhe pediam alguma coisa lá ia respondendo. Se lhe perguntavam alguma coisa e não sabia dizia que nunca tinha ouvido e sorria. E as pessoas pareciam achar piada e explicavam-lhe. E assim foi passando entre diferentes grupos ao longo dos anos. Quando entrou na adolescência sentiu que tudo parecia ser mais difícil, mas também ela já tinha conseguido aprender mais alguns truques. Mas não deixou de sofrer. Aos 14 anos começou a fumar ganza. Descontrai-a. E nas festas para que era convidada bebia um pouco mais e ficava mais relaxada e capaz de estar no grupo. E como a adolescência enquadra muitos comportamentos, os seus eram apenas mais um. Mergulhava cada vez mais nas séries, nos livros e nos videojogos. Sente que todo aquele ambiente era uma escola, um tutorial para a vida. Aprendeu muito em todas aquelas personagens, apesar de sentir que nunca conseguiu por em prática uma boa parte daquela informação. Na realidade as coisas pareciam-lhe sempre tão diferentes.
Mesmo em criança, as brincadeiras que as outras raparigas tinham e algumas daquelas regras não lhe pareciam fazer sentido. Mas havia sempre alguém que mandava na situação e tomava conta das coisas. E ela procurava quase sempre seguir esta pessoa. Percebia que as outras respeitavam-na e ela fazia igual. Mas ficava sempre perplexa com o que estas diziam por detrás desta outra sobre si. E perguntava-se porque quereriam elas tanto concordar com a outra quando na realidade não gostava da sua maneira de ser. E quase mais valia fazer-lhe frente e fazer com que ela deixasse de o ser assim. Ela pensava em muitas coisas, muitas possibilidades, muitos se's e mas. Um pouco como nas séries e em todas as personagens dos filmes. Mas sempre foi mais difícil sentir que as outras raparigas gostassem das suas coisas. Sempre teve um interesse intenso em moinhos de vento. Nunca ouviu nenhuma colega falar de moinhos de vento e como tal sentiu que nenhuma haveria de gostar e como tal nunca se atreveu a fazer conversa sobre isso. A certa altura gostou de cães. Interessou-se bastante sobre o tema, e chegou mesmo a fazer voluntariado numa associação. Disseram-lhe um dia que ela parecia não saber falar de outra coisa e que era estranho nem sequer ter um cão. Na verdade, os pais quiseram dar-lhe um cão no aniversário mas ela não se conseguiu decidir sobre a raça. E nunca mais voltou a falar sobre cães. Tudo sempre foi muito difícil, sofrido, e quase sempre em silêncio.
Quando começou a ser mais frequente as relações amorosas, não demorou muito para lhe começarem a perguntar se ela gostava de algum rapaz. Na altura, ficou sem saber como responder. Talvez porque tenha ficado rosada, as outras acharam que teria ficado corada e que seria tímida. Sentiu que daquela vez tinha passado mas que rapidamente lhe haveriam de perguntar uma e outra vez. Na verdade ela nunca tinha gostado de nenhum rapaz ou sequer de uma rapariga. Apesar de se ter sentido sempre melhor junto das raparigas. Parecia ser-lhe mais fácil. Até porque os rapazes pareciam sempre mais fisicos nas brincadeiras e o toque era algo complicado para si. Agora já não tanto. Na altura, teve uma primeira experiência sexual com uma amiga. Não percebe como terá acontecido. Estavam a falar e quando percebeu a amiga beijou-a. Acabou por nunca ter conseguido voltar a falar com a amiga sobre aquela situação. Tudo era novo. A cada minuto que passava parecia surgir mais uma coisa diferente. Mais tarde voltou a ter algumas relações com homens. Nunca sentiu que nenhuma daquelas relações tivesse sido sequer perto de satisfatórias.
Crescer sem ter o diagnóstico Perturbação do Espectro do Autismo teve um impacto devastador na sua forma de se perceber, e até mesmo de se conceber enquanto mulher. Esta noção vai sendo construída ao longo dos anos na interacção com o outro e na capacidade de se pensar a si própria. E isto sempre esteve enviesado desde o principio. Sente-se como se lhe tivessem negado a identidade, ou pelo menos a hipótese de ter participado na sua construção. Sente-se como se tivesse sido costurada. Houve parte de si, talvez importante que deixou de tomar atenção. Não lhe faziam sentido na altura e também ninguém lhe explicou isso convenientemente para si, para a sua forma de ser. Desde as questões da higiene pessoal. Coisas que hoje enquanto mulher adulta consegue compreender, pelo seu próprio esforço. Momentos fundamentais como a menstruação e o fazer a depilação. Recorda-se de ter ouvido vezes suficiente que parecia um animal. E no principio e durante algum tempo não o compreendeu. Porque ela não conseguia alcançar de porquê alguém diria uma coisa daquelas e porque também não tinha ninguém que a ajudasse a compreender, fosse uma amiga ou um psicólogo. O seu corpo falou sempre com ela. E ela não o conseguiu entender, descodificar. Simplesmente sentia-se diferente e reagia de forma diferente. E os outros chamavam-lhe diferente. E pelo menos isso parecia bater certo.
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