É um pássaro? É um avião? Não, são apenas duas crianças a procurar brincar ao faz de conta de que são super-heróis. A Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) é associada por norma a um deficit persistente em muitas áreas ao longo do ciclo de vida. Mas é possível verificar em várias pessoas Autistas uma melhoria moderada a significativa em tantas outras áreas.
A heterogeneidade verificada na PEA ao longo de todos estes anos, e adicionalmente, a própria heterogeneidade dentro de um quadro de PEA ao longo do ciclo de vida leva uns e outras a questionar-se o que poderá estar por detrás desta possibilidade. Ou seja, cada Autista é igual a si próprio na medida em que apresenta características semelhantes dentro dos critérios de diagnóstico mas com uma expressão qualitativa própria e diferente de qualquer outro. É comum verificarmos que um Autista ao longo do seu ciclo de vida apresenta grandes variações na expressão fenótipica. As evidências e dificuldades expressas na infância não têm de corresponder às encontradas na adolescência ou vida adulta. E por norma não correspondem. Até porque as exigências destas próprias etapas do desenvolvimento são diferentes. Já para não falar das diferenças encontras na expressão comportamental do Autismo no masculino versus feminino. Em que neste último caso parece haver mais frequentemente uma melhor capacidade de desenvolvimento de competências sociais. Ainda que se continue a verificar um conjunto vasto de dificuldades associadas.
E como tal vários investigadores, clínicos, Autistas e familiares têm-se perguntado e procurado compreender o que pode ajudar a explicar toda esta heterogeneidade. Porque haverá Autistas mais capazes do que outros, seja dentro daquilo que é a classificação dentro dos níveis 1 a 3 na DSM-5. Mas também porque é que alguns Autistas vão sendo mais capazes de enfrentar determinadas adversidades ao longo do tempo quando antes não o eram. Classicamente, a resiliência refere-se à ocorrência de um “bom resultado” inesperado diante da adversidade. Podemos então pensar que a adversidade é o diagnóstico de PEA e a resiliência torna-se um marcador de heterogeneidade no prognóstico no contexto dessa mesma adversidade.
Resiliência na PEA pode parecer uma conjunção estranha porque a PEA é pensada como uma perturbação ao longo da vida, onde bons resultados não parecem ser possíveis de considerar face a um conjunto de sinais e sintomas que vão continuando a existir ao longo do desenvolvimento. No entanto, esta é uma visão estreita de resiliência e uma visão estigmatizante da PEA, pois implica um valor atribuido ao conceito do que constitui "bons resultados". Ou seja, se bons resultados forem aqueles relacionados com autonomia de residência, isto é viverem sozinhos e de forma autónoma e independente. Ou então, terem um curso superior ou um contrato de trabalho, etc. O conceito de bons resultados pode estar enviesado no caso de muitos Autistas. No entanto se olharmos para os conceitos de resiliência e PEA de uma forma mais lata os mesmos não precisam de ser tidos como estranhos e contrários como o podem parecer à primeira vista. E com o tempo, a noção de resiliência foi refinada e agora tem mais uma nuance contextual. Ou seja, a resiliência é vista não apenas como uma característica da pessoa mas também como uma característica potencial do ambiente que fortalece a capacidade da mesma de lidar com a adversidade.
Tais características ambientais podem incluir: um forte relação de apoio com um cuidador; um meio escolar positivo; ou configurações do contexto familiar, escolar e comunitário que atendam às necessidades das pessoas incluindo o seu desenvolvimento social, emocional e cognitivo. Resiliência agora é vista com mais precisão como resultado de um processo - aqui interações entre a pessoa e as características contextuais do seu ambiente pode levar a resultados bons ou ótimos, apesar das adversidades externas ou factores de risco.
Mas a questão continua a persistir. Como é que determinados Autistas em determinados momentos conseguem ultrapassar a barreira da socialização e começar a estar ou conviver com os seus pares? Já tenho tido situações de Autistas em acompanhamento que após se ter "explicado" com maior e melhor o que implica uma interacção social com outros e se ter experimentado na prática uma situação de interacção em modo protegido e planeado. A situação antes vivida e pensada de forma mais ansiogénica passou a ser mais facilmente possível. Não que o desconforto não continue a estar presente. Não que a sensação de que aquela interacção não é vivida de forma satisfatória. Mas o certo é que a interacção passou a acontecer. E os exemplos são vividos de forma mais positiva. O mesmo também tem acontecido com situações relacionadas com a integração em contexto real de trabalho. Todas as situações de ter de realizar determinadas tarefas e em contexto de grupo num local desconhecido eram vividas de maneira desconfortável e com ansiedade. O facto de ter sido possibilitado um planeamento cuidado e adequado à situação da pessoa permitiu que a possibilidade passasse a realidade. Não ocorre com todos mesmo que tenha havido este planeamento. Até porque a própria disponibilidade da pessoa para se expor à situação é variada. E isso parece fazer a diferença.
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