Se você é daqueles que acredita que é possivel um porco andar de bicicleta então este post é para si. Ou se conhece alguém que preenche esse critério dê-lhe a ler. Na verdade, ver um porco montado em cima de uma bicicleta não nos devia levar a determinar que um porco consegue andar de bicicleta. Logo, pelo mesmo principio de lógica, não devíamos partir do principio que uma pessoa por fazer contacto ocular ou ter amigos não pode ser autista. É verdade, continuo a insistir nesta questão. E porquê? Em conversa com uma colega, ela contava como uma psicóloga diagnosticou uma Perturbação Obsessivo-Compulsiva a um jovem adulto de 20 anos, quando até a própria família já vinha há anos a insistir nesta possibilidade do Espectro do Autismo. E como é que isso é possivel? Porque a realidade do que é o Espectro do Autismo não tem passado o suficiente pela formação académica e ao longo da vida dos profissionais de saúde.
Tal como quando os meus pais me ajudaram a aprender a andar de bicicleta sem as rodinhas auxiliares vou procurar traduzir alguns dos pontos essenciais para esta questão do Espectro do Autismo:
1) A Perturbação do Espectro do Autismo é uma condição que ocorre ao longo da vida. Ou seja, crianças, jovens e adultos podem ter uma Perturbação do Espectro do Autismo;
2) Esta condição pode ser diagnosticada em qualquer período da vida da pessoa. Apesar da maioria ser diagnosticada entre os 4 e os 8 anos de idade, a pessoa pode ser diagnosticada em qualquer momento da sua vida;
3) Apesar de haver uma diferença ligeira no número de rapazes e raparigas que têm uma Perturbação do Espectro do Autismo, sendo que há mais rapazes do que raparigas (4:1). É importante perceber que as raparigas podem e apresentam na maioria das vezes algumas características diferentes dos rapazes, mas ainda assim, têm um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Nomeadamente, podem apresentar uma maior vontade em fazer contacto sociais e terem maiores competências para fazerem uso da camuflagem social;
4) É muito frequente encontrarmos nas pessoas autistas outros diagnósticos associados, como por exemplo, depressão, ansiedade, perturbação de hiperactividade e défice de atenção, perturbação obsessivo-compulsiva, dificuldades de aprendizagem específica (dislexia), esquizofrenia, anorexia, etc. Isso não quer dizer que se foi identificado uma destas outras condições que a pessoa não pode ter uma Perturbação do Espectro do Autismo;
5) A pessoa por não apresentar alguns dos comportamentos que estão normalmente descritos no Manual de Diagnóstico (DMS 5), não quer dizer que não possa ter uma Perturbação do Espectro do Autismo. A pessoa pode apresentar dificuldades na interacção social mas não na comunicação, e apresenta hipersensibilidade auditiva. E como não apresenta a totalidade dos critérios não tem autismo, está errado.
6) A pessoa por apresentar alguns dos comportamentos que estão referidos no Manual de Diagnóstico (DSM 5) como que a pessoa do Espectro do Autismo não os apresenta, não quer dizer que a pessoa não tenha um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Ou seja, se a pessoa fizer contacto ocular e como na DSM 5 diz que as pessoas autistas não fazem contacto ocular, então não pode ser autista, está errado.
Posto isto, penso que já podemos andar de bicicleta. E também podemos ajudar muitas pessoas a serem diagnosticadas e ajudas convenientemente.
Apesar dos esforços para reduzir a idade de diagnóstico de PEA e melhorar as disparidades na identificação de crianças de diversas origens, apenas recentemente as coisas começaram a andar diferente.
É sabido que os Pediatras fazem um excelente trabalho no reconhecimento e diagnóstico da PEA em crianças, não obstante a dificuldade no reconhecimento destes sinais em crianças mais pequenas, mas também pela própria dificuldade em observar estes comportamentos em consultas de 30 minutos. No entanto, a utilização de instrumentos de rastreio como o M-CHAT, estudo pela amiga e colega Dra. Carla Almeida, poderia fazer toda a diferença. E já foi demonstrado que a utilização deste mesmo instrumento na avaliação retrospectiva de informação contida nas bases de dados dos Pediatras obteve resultados muito significativos de crianças que deveriam ter sido diagnosticadas mais cedo pois já na altura apresentavam sinais suficientes para isso, ou de pelo menos serem seguidas com mais cuidado.
Em relação às crianças mais crescidas, jovens mas também para os adultos há instrumentos de rastreio que podem ajudar estes profissionais, nomeadamente profissionais de saúde dos cuidados de saúde primário, mas também dos Psicólogos. Estes últimos é fundamental ter uma especial atenção atendendo a que continuam a ser enviadas muitas crianças a consulta de Psicologia devido a questões de alterações comportamentais, ansiedade e depressão, baixos rendimentos escolar, entre outros. Dependendo da leitura que o Psicólogo possa fazer do caso e da conceptualização do mesmo, irá fazer depender a eficácia da intervenção e de outras possibilidades futuras de ajuda especializada.
Tal como as bicicletas também precisam de cuidados ao longo do tempo, nem que seja encher os pneus e colocar óleo na corrente. Também nós profissionais de saúde precisamos de cuidar da nossa formação & supervisão clínica. Precisamos de compreender que estamos com as pessoas apenas num determinado período de tempo das suas vidas. E há determinado conjunto de comportamentos que podem não ser evidenciados mas isso não quer dizer que não haja alguma problemática. Pensarmos que os jovens neste momento estão mais tempo retidos em casa e nos seus quartos nos videojogos e como tal não é preocupante que isso esteja a ocorrer é prejudicial se não for avaliado mais cuidadosamente. Da mesma maneira que pode ser prejudicial a sobrevalorização de determinados outros comportamentos. O mesmo se aplica aos sintomas depressivos ou a queixas subjectivas de uma tristeza recorrente, como algo próprio da adolescência.
Tal como nas bicicletas, quando o seu utilizador cresce, também é importante mudar de bicicleta. Ou então quando o seu utilizador decide avançar para outros terrenos há que ter um bicicleta em condições. O mesmo se passa no autismo na vida adulta. Há um certo número de coisas que mudam. Seja porque a pessoa já foi diagnosticada há mais tempo e foi beneficiando de acompanhamento. Porque ainda não foi diagnosticada mas vai encontrando na medida das suas competências forma de dar uma resposta às suas necessidades. Ou então, a pessoa adulta, tal como tantos outros adultos sem autismo, vai reflectindo sobre a sua vida e isso também se faz reflectir naquilo que observamos sobre si. Mas normalmente aquilo que observamos é algo diferente do que observamos na mesma pessoa enquanto criança e adolescente. E tudo isto não significa que a pessoa não seja autista.
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