"Toda a gente sabe que os homens são brutos
Que deixam camas por fazer
E coisas por dizer
São muito pouco astutos, muito pouco astutos
Toda a gente sabe que os homens são brutos..."
Miguel Araújo, Os maridos das outras
Muitos já trautearam esta música, sorriram, apontaram dedos, colocaram como toque de telemóvel quando o seu mais que tudo (i.e., esposo, marido, companheiro, namorado, etc.) lhe liga, etc. Mas a música de que lhes vou falar hoje é outra. Trata-se da situação quando um dos membros do casal tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e o outro não.
Nestas situações podemos estar a falar de várias possibilidades. Desde a própria pessoa que não sabe ainda do seu diagnóstico até ao que já sabe mas não tem ideia de como dizer isso à pessoa com quem vive. Mas também ao membro do casal que não tendo um diagnóstico suspeita que o/a companheiro/a possa ter, mas também não sabe como lhe dizer.
Por esta altura alguns dos leitores, principalmente se não autistas, estarão espantados ou estufectos e incredulos de estarem a ler um texto a falar sobre pessoas autistas em relações amorosas. Mas tal como também muitos ainda nem sequer ouviram esta música do Miguel Araújo, também há muitos que nunca conheceram a vida das pessoas autistas.
Antes de entrar nesta reflexão propriamente dita gostaria de referir que esta questão da necessidade e da importância dos membros do casal se compreenderem é transversal a qualquer um de nós, sejamos não autistas ou autistas. É algo inerente à condição humana podermos nos compreender, ainda que uns e outros o possam fazer de uma forma diferente, seja quantitativa ou qualitativamente. As relações podem ser complexas na melhor das hipóteses, independentemente do facto de a pessoa ser ou não autista. É vital saber - Não é o autismo que dificulta as relações amorosas! Aquilo que afecta negativamente as relações é a ausência de comunicação e a disponibilidade para compreender o Outro!
Até porque o problema da dupla empatia está presente também nas relações amorosas. Ou seja, não é apenas as características da pessoa autista e da sua maior dificuldade de compreender as pistas sociais que leva às situações de incompreensão. É também a forma de funcionar da pessoa não autista no casal e da sua maior dificuldade em se descentrar da sua forma habitual de sentir, pensar e fazer as coisas para se conseguir colocar no papel da pessoa autista de relação que também promove esta incompreensão.
E como tal, também nos casais onde um dos membros é do espectro do autismo, iremos ter todo um conjunto de questões às quais já estamos habituados a falar ou ouvir dizer. Nomeadamente, alguns estereótipos, crenças e mitos que temos sobre os casamentos, assim como de ambos os membros do casal. Por exemplo, quem nunca ouvi falar sobre o maior pragmatismo masculino, e que costuma exasperar quando a sua companheira procura ter um plano bastante detalhado para aquilo que é considerado por ele como simples. Ou a questão da escolha e separação da roupa clara da escura para colocar na máquina de lavar. Mas também o estender da roupa demasiado perto uma da outra e que demora mais a secar, ou colocar três meias na mesma mola. Mas também o não baixar da tampa da sanita ou acertar no urinol, ou não deixar a roupa pelo chão da casa de banho ou outras assoalhadas da casa. E não parecer ter a minima sensibilidade ou empatia para conseguir perceber o que a sua companheira poderá ter ou querer falar. E se o conseguir fazer parecer não ter profundidade na forma de abordar a questão e continuamente colocar as coisas em si de uma forma mais egocentrica. Os exemplos são mais que muitos e vários, e vocês terão certamente situações vividas na primeira pessoa para além destes aqui referidos.
Apesar de nos casais podermos ter várias configurações (i.e., heterosexual, homosexual, não binário, etc.), gostaria de dizer que termos um dos membros do casal com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, não é igual se for do sexo masculino ou feminino. Isto porque sabemos que a expressão fenótipica do autismo no feminino diferente, e por vezes, de forma significativa das características expressas no homem. Mas também é importante poder pensar que no espectro do autismo vamos poder encontrar um perfil de funcionamento mais pragmático e lógico e que não é somente característico ou exclusivo no homem. E como tal, iremos observar igual pragmatismo no feminino, o que pode tornar-se também uma maior dificuldade na relação.
Um aspecto intrinseco a uma relação amorosa é a confiança. Sendo que a falta desta leva frequentemente a conflitos e rupturas. Uma das coisas que cria esta falta de confiança é a mentira. Sejam situações relacionadas com relações extra-conjugais até a questões menores que se pretende ocultar da outra pessoa, a mentira está lá presente. Um equívoco que continua a ser difundido sobre o autismo é que as pessoas autistas são incapazes de mentir. Parece que a falta de tacto normalmente associada ao autismo tem sido frequentemente confundida com a incapacidade de mentir. Ser directo quando a sua companheira lhe pergunta como fica num vestido não é certamente a mesma coisa que ser incapaz de mentir. Embora as observações feitas com menos filtro e que acompanham com frequências as pessoas autistas possam ser problemáticas para uma relação íntima, são pequenas em comparação com os danos que a desonestidade inflige ao casamento neurodiverso. As pessoas autistas são certamente capazes de mentir, e muitos são bastante resistentes à partilha de informação com os seus cônjuges. A desonestidade no casamento certamente não é exclusiva do autismo - obviamente, ninguém está a questionar se os neurotípicos são capazes de comportamentos duvidosos.
Se estiver a ler este texto e se identifica como pessoa não autista e está numa relação com uma pessoa autista, então este texto também é para si. Como pessoa não autista, pode ser difícil apoiar o seu parceiro autista. Ele pode comunicar de uma forma diferente da sua, ou ter dificuldade em expressar as suas necessidades e desejos.
É claro que nem toda a gente é igual, mas para as pessoas autistas, aspectos como a percepção das regras sociais tradicionais e da linguagem corporal, a compreensão dos seus próprios sentimentos e o processamento sensorial podem nem sempre ser naturais. Por vezes, isto pode levar a mal-entendidos numa relação, ou pode dar-se conta de que o seu parceiro diz ou faz algo que é involuntariamente ofensivo. Pode ser difícil lidar com esta situação. E como tal, ter um parceiro autista pode significar ter de o ajudar na interação social, especialmente em relação a regras sociais não escritas. Ainda que esta ajuda pode e deve ser falada no casal, nomeadamente de como e quando esta deve ser feita. Até para não reforçar uma ideia de não ser capaz na outra pessoa, ou de a forçar a fazer algo que na realidade a pessoa não esteja com vontade de fazer naquele momento. O parceiro não autista na relação pode por vezes sentir-se como se fosse o “pai” da relação. Talvez o parceiro autista não seja tão hábil a lidar com certas circunstâncias e o parceiro neurotípico veja a necessidade de assumir o controlo. A pessoa neurotípica pode desenvolver o hábito de falar pelo seu amigo autista, temendo que o seu compenheiro possa coometer uma gafe. Este sentimento e papel na relação deve ser evitado, até porque tem prejuizo de parte a parte na relação e em cada um dos membros do casal.
O seu parceiro autista pode ter dificuldades em interpretar a comunicação não-verbal, como a sua linguagem corporal, expressões faciais e tom de voz. Pode não ser capaz de perceber, só pelo seu comportamento, que precisa de apoio ou tranquilidade. Isto pode ser prejudicial, pois pode parecer indiferença. Tente ser aberto com o seu parceiro, dizendo-lhe o que está a pensar, o que sente e o que precisa dele.
O seu parceiro pode estar ansioso, ter certas rotinas que precisa de seguir ou ter dificuldades de organização e de definição de prioridades. Pode ser útil falar com o seu parceiro sobre quaisquer problemas de relacionamento que esteja a ter e explicar os seus sentimentos de uma forma calma e fundamentada. O seu parceiro pode preferir discutir as coisas por escrito, pois assim terá mais tempo para processar o que está a dizer. Isto pode ser feito utilizando uma linguagem clara num e-mail ou numa mensagem de texto.
Como em qualquer relação amorosa, é fundamental encontrar pontos em comum, mas não percam de vista as vossas diferenças. É provável que ambos interpretem o mundo e as suas interações de formas diferentes. A forma como reagem às situações também pode ser diferente. O parceiro autista pode precisar de um momento a sós para processar as suas emoções ou querer viver novas experiências passo a passo. Por outro lado, o parceiro não autista pode querer expressar verbalmente as suas emoções ou enfrentar os desafios com base em reacções instintivas.
Nas relações, ninguém tem sempre razão. É importante ter consciência da forma como o seu comportamento provoca reacções na pessoa de quem gosta e influencia a dinâmica da vossa relação. Se houver um problema recorrente entre vocês os dois, dedique algum tempo a reflectir sobre a forma como pode estar a contribuir. Isto aplica-se tanto à pessoa autista como à pessoa não autista.
Ao longo do texto frequentemente a palavra comunicação e melhoria da comunicação foi usada. Contudo, a forma de comunicação, seja verbal e não verbal entre pessoas autistas e não autistas é diferente. E como tal, é fundamental que ambos os lados do casal, seja a pessoa autista e não autista, precisa de conhecer a forma preferencial da outra pessoa comunicar, além de poder continuar a melhorar e adaptar a sua forma de comunicação. Por exemplo, há pessoas que sentem que têm de falar as coisas quando estas acontecem. Ou então, de que têm de falar das coisas de uma forma aprofundada até se obter uma total compreensão e esclarecimento do assunto. Situações como estas podem levar as pessoas à exaustão, sejam estas autistas ou não autistas. E como tal é fundamental poder adaptar de modo conveniente a ambas as partes e em beneficio da relação e da resolução da questão. Poder escrever algumas ideias do que se quer conversar para que a outra pessoa possa saber de antemão o que irá ser falado. Parar uma conversa em determinada altura pois a outra pessoa já não está capaz de continuar a seguir a conversa, etc. Estas e outras situações são fundamentais para que a comunicação efectiva de cada um dos membros do casal possa ser usada e potenciada na relação.
O texto não explorou nem pretendia explorar a totalidade das questões presentes nas relações amorosas quando um dos membros é uma pessoa autista. Mas poder ser um contributo para que se tenha conhecimento dos potenciais desafios e mais valias nas relações amorosas entre pessoas autistas e não autistas. Além de poder ajudar a que ambos os membros do casal possam fazer o seu caminho até ao ponto de encontro do Outro.
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