"- Então doutor, qual é o diagnóstico?", perguntou com voz de quem parecia saber algo mais do que havia brevemente dito. "- Diga-me você. Você é que é o médico!", respondi-lhe. Poderia ser uma deixa em The Good Doctor. Mas não é. Ou poderia ser um excerto de um diálogo de um médico que se dirigiu a uma consulta para si nesta altura da pandemia para saber do seu estado actual de saúde. Mais perto! Ou então, apenas um inicio de diálogo para sublinhar a importância destes profissionais de saúde neste e em outros momentos da nossa vida! Quando o Dr. Shaun Murphy (The Good Doctor) apareceu no ecrã foram muitos aqueles que se questionaram sobre a veracidade do enredo. Nomeadamente, pelo facto de lhes parecer pouco plausível que o médico pudesse ser autista. Pouco verídico para a representação que muitos têm do autismo e também dos médicos. Sem dúvida que são excelentes profissionais e que tem a possibilidade de privar pessoalmente como alguns saberá o quanto são de excelentes seres humanos. Mas também os autistas. E igualmente os médicos que também são autistas.
"(...) Formei-me na universidade com distinção. Apesar de tudo isso, 10 anos depois fui demitida do meu trabalho, na sequência da minha ausência devido a uma depressão e ansiedade. Eu não tinha ideia de que era autista. Com aumento da compreensão dos meus diferentes processos de pensamento e sensibilidades sensoriais, é mais claro para mim agora. Sinto que lutei muito como médica e para continuar a ser médica e sinto que os meus problemas aumentaram em muito devido a esse trabalho todo. Casei-me e tive filhos. Com o crescente requisito de multitarefa e adaptação a mudanças inesperadas, fui-me sentindo mais e mais cansada. Eu sempre senti que estava a trabalhar muito mais do que meus colegas simplesmente para me manter à tona. Eu não fornecia detalhes e explicações desnecessárias para os outros o que me levou mais tempo para eles se tornarem confiantes nos meus procedimentos e minhas próprias habilidades. Senti-me uma idiota. Parecer normal era cansativo, mas eu ainda me sentia uma estranha e não me encaixava com os colegas. Descobrir que havia uma razão biológica para eu ser obviamente inteligente, mas que me levava a lutas com coisas aparentemente simples finalmente ajudaram-me a entender e aceitar as minhas diferenças. Ter passado a receber suporte específico para a minha Perturbação do Espectro do Autismo e ter-me ligado a outros autistas adultos, incluindo médicos, ajudou-me a reformular as minhas experiências, aumentar minha auto-estima, gerir melhor os meus níveis de energia e ter a confiança necessária para pedir ajustes necessários. Actualmente, estou à procura de novos caminhos na psicoterapia, mas, se meu autismo tivesse sido entendido e apoiado mais cedo, acredito que teria tido a possibilidade de ter uma carreira médica de sucesso, assim como para outros no espectro autista.".
Este é um excerto de uma médica com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, nível 1. Diagnóstico esse feito tardiamente na sua vida. Porque é mulher e apresenta um conjunto de características com diferenças qualitativas face ao que é concebido como Perturbação do Espectro do Autismo. Porque estes critérios assentam em muito naquilo que são as expressões do espectro no autismo nos rapazes. Mas também porque é uma pessoa com uma inteligência acima da média. E continua a ser visto como uma característica positiva, independentemente de outros factores que lhe possam estar associados. Ou seja, se a pessoa for bastante inteligente alguns comportamentos como um maior isolamento social parece encobertos ou mais facilmente desculpados. Assim como a ausência de algum filtro social é visto como uma maior frontalidade e parece ser algo típico das pessoas inteligentes. E porque é mulher e inteligente foi sendo capaz ao longo da vida em aprender um guião de comportamentos sociais. Aquilo que hoje é designado de camuflagem social. E como tal, se é mulher, excelente aluna, mais sossegada, médica e até consegue estabelecer contacto ocular e sorrir em situações sociais - então não pode ser autista. E assim se perdura o sofrimento de uma pessoa durante um período grande da sua vida. E se muda a trajectória de vida dessa mesma pessoa.
Na Medicina, tal como em tantas outras profissões, parece haver um conjunto de requisitos que parecem ter um melhor emparelhamento com determinas pessoas com determinado perfil de funcionamento. Por exemplo, certas características autistas são valorizadas nos médicos. A atenção aos detalhes, excelente capacidade de recuperação de informação e solução criativa de problemas. Uma paixão motriz e um forte trabalho ético em ajudar. Tal como parece haver um melhor Emparelhamento entre autistas e profissionais relacionadas com as Tecnologias de Informação, ou Contabilidade, entre outras. Não quero estabelecer nenhum paralelismo. Até porque os estudos demonstram que ele não parece existir. Mas por exemplo, no Reino Unido foi feito um estudo sobre a prevalência de pessoas autistas na classe médica e foi determinado que é de 1%. Semelhante à prevalência de autismo na população adulta. Facto que lhe confere alguma validade e que nos diz que também na Medicina há pessoas que são autistas.
Mas o próprio exercício da Medicina entre outras profissões tem mudado. A própria Medicina em si tem mudado. As próprias pressões existentes no processo de formação em Medicina parece maior, associado às pressões já em si maiores e mais complexas da vida na actualidade. E as exigências apresentam um custo muito grande na factura quotidiana da pessoa autista. Normalmente resulta muito frequentemente numa fadiga constante e num maior desanimo e vontade de desistir, prejudicando o seu desempenho, facto que no caso da Medicina é francamente prejudicial, principalmente para o utente. Poucas pessoas autistas têm a sorte de serem orientados pelo presidente do hospital, ao contrário do Dr. Murphy na série The Good Doctor. Nesta série centrada em torno de um cirurgião autista cujo trabalho no hospital é frequentemente ameaçado, ver-se-ia perdido se não fosse pelo apoio prático e emocional do presidente do hospital.
Sempre houve autistas médicos, mas agora o campo da medicina, e o mundo, são mais desafiadores para o clínico neurodivergente navegar. O autismo não é nenhuma desculpa para a incompetência, mas também não é a condição (ser autista) uma razão para os empregadores impedirem a prática e carreira de sucesso e a progressão dos médicos com PEA. É necessário haver uma maior compreensão e apoio para permitir que os médicos com autismo possam continuar a ser activos. E tudo isto dito anteriormente também o é verdade para qualquer área profissional em que uma pessoa autista possa vir a desejar trabalhar.
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