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Os blues dos autistas

Em 1981 tinha seis anos e como tal já podia ver coisas de crescidos. E quando ouvia a banda sonora do genérico saia a correr de onde estivesse para me pregar à frente da Tv e assistir à Hill Street Blues. Parecia que tinha ouvido no rádio um "10-40", "Alguém disponível para atender a chamada?". Na altura traduziram para Balada de Hill Street. Nunca achei que a tradução fizesse justiça ao que realmente acontecia na série. Anos mais tarde descobri o sentido mais profundo da palavra "Blues" e então entendi melhor. Há muita coisa que também parece não se perceber no Espectro do Autismo. Como se fosse o caso de uma tradução mal feita. E a proximidade entre as pessoas autistas e o sistema judicial é uma delas.

Porque razão uma pessoa autista não contacta com a mesma frequência que uma pessoa neurotipica com o sistema judicial? É esperado que ao longo da vida se possa ter um conjunto de acontecimentos de vida, em que estamos mais ou menos directamente envolvidos e que seja necessário contactar o sistema judicial. Por exemplo, ter sido vitima de um roubo e ter de prestar depoimento numa esquadra da PSP. Ou ter de ir a tribunal porque se foi chamado enquanto testemunha da ocorrência de um crime. Mas também porque foi pedido para parar numa auto-estrada pelas forças policiais porque se ia com excesso de velocidade. Mas como estava atrasado para o trabalho acabou por parar apenas quando chegou ao trabalho e a policia viu-se forçada a intervir. Ou no caso de se ter divorciado e ter de estabelecer a regulação das responsabilidades parentais com a sua ex-mulher. E o que dizer dos casos das pessoas que vivem num prédio e terem algumas divergências com algum dos inquilinos e nem sempre a medicação de conflitos consegue ajudar?!


Se pensarmos, há muitas coisas em que o sistema judicial intervém na nossa vida, directa ou indirectamente. E ainda que pensemos que tudo no sistema judicial é negativo ou tem a ver com algo negativo, não é verdade. Se pensarmos que o sistema judicial e o direito de uma maneira geral serve o propósito da regulação do comportamento humano. Mas como muitas pessoas comentam, nem sempre o tempo e velocidade do sistema judicial se parece compadecer da nossa urgência em resolver as coisas. Seja porque estamos desesperados em resolver a situação do condomínio porque já não conseguimos aguentar o vizinho que cada vez que sai de casa bate a porta de casa com aparente força. Ou porque estamos com maior dificuldade nos fins de semana com os nossos filhos porque a mãe parece não ter o mesmo entendimento do regulamento das responsabilidades parentais. Mas também porque se tem a ideia de que a hora de entrada no trabalho é para cumprir sempre. E no caso de se ser testemunha num crime nem sempre parece fácil de gerir o que se observou com o que se pensa em relação à situação em si, embrulhado em toda a ansiedade do momento de prestar depoimento. Uma coisa é certa, se alguém receber um convocação para ir a tribunal é provável que nesse dia e no dia em que tem de se deslocar lá venha a sentir um aumento de ansiedade


E como tal, a pergunta mantém-se - Porque razão uma pessoa autista não contacta com a mesma frequência que uma pessoa neurotipica com o sistema judicial? Se tudo o que disse anteriormente for verdade, não parece fazer sentido não se ouvir mais relatos. Acredito que em alguns casos a explicação possa ser porque há muitas pessoas autistas que acabam por não ter autonomia suficiente e outros que não lhes é possibilitado o exercício dessa sua autonomia. E isso acaba por levar a que não contactem o suficiente com as Sociedade e como tal também não lidam com o sistema judicial em si. Não obstante haver vários casos de pedidos de pais do adiamento da maioridade dos seus filhos autistas. E porquê? Porque sentem que em muitos dos casos os mesmos parecem não ser suficientemente autónomos e independentes e serem capazes de tomar decisões para a sua própria vida em consciência e como tal possam colocar a sua vida ou a de terceiros em risco.


Mas depois verificamos que ao longo do desenvolvimento há vários casos em que as crianças e jovens autistas se vêm envolvidas em situações mais difíceis, nomeadamente, bullying e ciberbullying, sejam enquanto vitimas na sua maioria, mas também enquanto agressores. Ainda que vamos assistindo a um número menor de casos que evolui ao ponto de necessitar de envolvimento do sistema judicial. Até porque acaba por haver um envolvimento maior das famílias, escola e dos próprios técnicos que acompanham a criança/jovem. O certo é que há muitas situações destas de bullying e ciberbullying que perduram ao longo do tempo e parece que acabam por não ter o envolvimento do sistema judicial também porque não há uma denuncia formal feita. E ainda nas situações ocorridas na escola episódios em que alguns estudantes com Perturbação do Espectro d Autismo se podem ver envolvidos em problemas maiores em parte devido à sua maior ingenuidade, mas também ao aproveitamento negativo de alguns colegas que lhes dizem para fazer algo que é ilegal. Por exemplo, pedirem ao colega que traga um objecto cortante para a escola, traga determinada quantidade de dinheiro para emprestar a um colega ou que guarde droga na sua mala, entre outras.


São várias as situações em que as pessoas autistas se podem ver envolvidas com o sistema judicial. E se pensarmos, grande parte destas situações podiam não ocorrer se houvesse uma outra actuação por parte de várias Instituições ao longo do desenvolvimento. Mas também se houve uma melhor preparação dos profissionais que estão nestas várias Instituições, seja na escola, e neste caso especifico no sistema judicial. São várias as situações que têm sido noticiadas, seja nos EUA mas também em outros países, de jovens ou adultos autistas que acabaram por ser alvejados por forças policiais por não terem acatado as suas ordens. À semelhança do que tem existido em Portugal, num esforço conjunto entre os profissionais de psicologia e o sistema judicial para como melhor intervir junto das crianças em situação de audiência em tribunal. Mas também da preparação dos profissionais de segurança pública para como agir com as vitimas de violência doméstica.


Estes e outros exemplos, seja em Portugal mas também em outras partes do mundo, mostram que há determinadas grupos de pessoas vulneráveis. Sejam por força das situações em que se vêm envolvidas, nomeadamente serem vitimas de algum tipo de violência física, sexual ou psicológica. Mas também por serem grupos com maior vulnerabilidade e a precisar de mediação nos processos com as Instituições, por exemplo o caso das pessoas autistas. O certo é que nos parece fundamental que o sistema judicial possa estar capaz de compreender alguns destes comportamentos e os possa enquadrar naquilo que é o perfil de funcionamento de uma pessoa autista, sob pena de poder não estar a fazer justiça, nomeadamente, não compreendendo sequer a posição da pessoa.

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