Muitos de vocês pensam que acertaram imediatamente, certo? A pessoa de calças pretas e camisola azul, correcto? Mas não! A senhora Elisabete (nome fictício) tem uma filha, a Júlia (nome fictício) de 43 anos com uma Perturbação do Espectro do Autismo. A Júlia pediu à mãe que fosse procurar a colectânea dos livros do Wally que estão arrumados numa das várias assoalhadas lá de casa e que servem para acomodar vários dos múltiplos conjuntos de coisas que Júlia colecciona. Júlia, não sei onde é que pode estar a tua colectânea de livros do Wally!, ouvia-se do corredor. Quando é que tu começas a deitar algumas destas coisas fora?, continuava Elisabete. Se continuar a depender apenas de mim, provavelmente não irei deitar nada fora, até porque eu não sei se irei precisar dessas coisas novamente! Talvez eu vá! Quem é que me pode garantir que não vá precisar, quem?, perguntava Júlia mais desesperada. Sempre que se procurava abordar este assunto com Júlia ela ficava mais ansiosa e desorganizada. E sistematicamente passava os próximos dias a rever todas as assoalhadas como que a garantir que nada tinha sido deitado fora. Os comportamentos e interesses restritivos e repetitivos representam uma característica central do autismo desde a concepção inicial desta condição. Estes comportamentos formam um conjunto de características distintas das dificuldades sociais e de comunicação, compreendendo vários comportamentos como movimentos motores repetitivos, comportamentos ritualízados, resistência à mudança e interesses fixos. Estes comportamentos podem ser categorizados como tendo um baixo ou alto nível. Os comportamentos de baixo nível incluem estereotipias motoras repetitivas (e.g., movimento de mão e balanceamento), ações repetitivas (e.g.,, vocalizações repetitivas), procura sensorial e comportamentos autolesivos, enquanto os comportamentos de alto nível incluem interesses, rituais e resistência significativa à mudança. A Associação de Psiquiatria Americana (2013) categorizou estes comportamentos em quatro subcategorias: (1) estereotipado ou movimentos motores repetitivos, uso de objectos ou fala; (2) insistência na mesmice, adesão inflexível à rotina, ou comportamento ritualizado; (3) interesses altamente restritos e fixos, que são anormais em intensidade ou foco; e (4) hiper ou hipo-reatividade à entrada sensorial ou interesses incomuns em imputs sensoriais ambientais. Sendo que a acumulação e os comportamentos autolesivos também podem ser incluídos aqui. Os comportamentos autolesivos são comportamentos autoinfligidos que têm o potencial de resultar em ferimentos físicos, como mordidas nas mãos, arranhões de pele, auto-agressão, bater com a cabeça e outros. A acumulação, não sendo um critério dentro do diagnóstico da Perturbação do Espectro do Autismo, é algo que ocorre com determinada frequência. Esta é definida como uma dificuldade persistente de se descartar de coisas suas, resultando em acumulação que leva a níveis de angústia significativa e com impacto significativo no funcionamento. A acumulação foi definida na DSM 5 como uma perturbação isolada, sendo que pode acorrer sem que existam outras condições associadas, tais como a Perturbação Obsessivo-Compulsiva. Independentemente da categorização que seja tida em conta, muitos destes comportamentos são procurados avaliar e compreender na infância, e muito menos na adolescência e ainda menos na vida adulta. Mas o certo é que os relatos clínicos e das próprias pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo nos grupos de auto-ajuda e fóruns mostram uma evidência com maior prevalência. Eu acumulo coisas de forma obsessiva, especialmente aqueles que estão relacionados ao meu passado . . . Eu sinto que me ajuda a preservar o passado! Se eu tiver uma memória física, isso garante que nunca me vou esquecer das coisas, refere Júlia. Não percebo o porquê de quererem que eu me veja livre das coisas?, diz a chorar. Eu leio na internet que muitas pessoas usam os discos rígidos e pen's usb para guardar as suas coisas, queixa-se. Porque é que não lhes pedem para eles se verem livres daquelas coisas todas. A própria internet é uma grande lixeira de memórias, reclama. Todos despejam para lá as suas coisas e ninguém reclama da acumulação, contrapõem. Porque é que depois querem que eu me veja livre das minhas coisas?, volta insistentemente à pergunta inicial e a chorar mais intensamente. Quanto a estas marcas que tenho no corpo, eu explico, diz Júlia. Eu não faço isso por raiva! Eu sei que algumas pessoas o fazem. Já li isso em alguns fóruns em que eu por vezes participo. Mas eu não o faço por raiva, concluiu. É quando sinto que minha parte do corpo está dormente e eu preciso de verificar se ela está a funcionar. Então eu belisco a área para ver se ainda tenho a sensação, percebes?, pergunta Júlia. Em momentos mais difíceis..., continua Júlia. Todos nós os temos, certo?, pergunta. No passado, passei por uns tempos tempos difíceis. Estava a sentir uma grande dor emocional e pensei em converte-la em dor física. Da mesma forma que as pessoas convertem ficheiros word em pages para poderem usar num outro sistema operativo. Ou da mesma maneira que a própria natureza converte água em gelo. Então eu converti a dor emocional em dor física. E comecei a coçar-me. E depois passei e arranhar-me com fios de metal e depois fiz desenhos com o sangue na minha pele...E sim, isso magoou-me! Foi uma grande violência contra mim, mas foi uma forma de substituir a dor mental pela física, percebes?, pergunta Júlia. Eu sou muito apegada às coisas, aos objectos, mais do que às pessoas...ainda que eu possa ser uma pessoa amigável, perceber?, refere Júlia. É que os objectos dão-me uma sensação de segurança, ao contrário das pessoas. Os objectos são mais previsíveis do que as pessoas. As pessoas já me desiludiram e muito. E continuam, acrescenta. Os objectos sabemos como é que eles vão reagir, além de que eles estão lá sempre disponíveis e não precisamos de os perseguir ou convencer de nada. Eles irão estar sempre ali para nós, as pessoas não, concluiu. Acumular muitas vezes é uma questão de segurança. Dá-me confiança estar cercada por áreas em que tenho controlo, de estar rodeada de coisas às quais eu me sinto fortemente ligada. Eu sinto essa rede de energia, aquela teia de memórias, uma rede emocional que se pode manifestar através de todos aqueles objectos. E quando dizem para eu me ver livre daquelas minhas coisas eu fico como as aranhas quando lhes tentam mexer na sua teia, compreendes?, pergunta Júlia. Já vi várias vezes como é que a aranha fica quando a minha mãe tenta tirar a teia com a vassoura. Às vezes também me sinto como uma aranha que guarda os seus tesouros, diz esboçando um ligeiro sorriso.
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