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O uniformologista

Penso fazer sentido dizer que não cumpri o serviço militar. E como tal, poder haver algumas questões próprias deste campo que me possam passar algo desapercebidas. Mas cumpri a minha formação em psicologia clínica, e continuo a minha formação ao longo da vida. E porque é que faço esta ressalva inicial? É porque no acompanhamento e avaliação de pessoas adultos com Perturbação do Espectro do Autismo, ou com suspeita de o ser, é muito comum encontrarmos várias situações de diagnósticos incorrectos ou de não diagnóstico. É o caso deste homem, Álvaro (nome fictício), de 55 anos de idade. Tem um passado marcado por acompanhamento psiquiátrico de longa duração em consulta de ambulatório. Tem um diagnóstico de uma Perturbação da Personalidade sem outra especificação conjuntamente com uma Perturbação Bipolar.

Álvaro foi seguido pelos serviços psiquiátricos comunitários por vários anos com um diagnóstico de Perturbação da Personalidade sem outra especificação em comorbilidade com Perturbação Bipolar. É um homem engraçado e animado de 55 anos, com contacto ocular escasso e quando o faz o mesmo parece não ser usado para regular a interacção com o Outro. A sua forma de falar era polida e prolixa. Foi possível o diálogo com ele, mesmo que fosse muito difícil detê-lo enquanto falava dos seus interesses especiais. Na verdade, Álvaro mostrou uma paixão avassaladora pela história, conhecendo quase todos os detalhes dos eventos históricos. E em particular, é fascinado por uniformes (“Eu sou um especialista em uniformologia”, disse ele). Essas paixões foram causando dificuldades na vida do Álvaro, na administração da vida diária, uma vez que ele passava grande parte do dia a investir empenhadamente nos seus interesses.


Álvaro vive sozinho num apartamento ao lado do seu pai, mas sentia não ser capaz de realizar as suas actividades de forma autónoma. Uma IPSS fornecia diariamente o almoço, enquanto o jantar costumava ser preparado pela sua irmã. Tinha uma pessoa que o ajudava a limpar a casa. Álvaro não tinha um emprego estável. Trabalhava sazonalmente como operador cultural. Tirou o Mestrado em História e no passado tinha trabalhado como professor em escolas de 2º e 3º ciclo. Nunca conseguiu manter o emprego por longos períodos e foi encontrando várias dificuldades na gestão das salas de aula. Álvaro também tinha problemas de interacção social com as pessoas, e tendo em conta que as suas conversas se circunscreviam em muito aos seus interesses, sentia que os outros não tinham assim tanto interesse. Além de que os seus relacionamento se limitavam a um trabalho mais sazonal.


O pai e a irmã do Álvaro relataram complicações durante o parto, mas que ele tinha tido um desenvolvimento normativo e sem atrasos perceptíveis. Referiram também que, na infância, foi diagnosticado com epilepsia para a qual ainda fazia uso de medicamentos. Além disso, relataram que, durante vários anos, o Álvaro escreveu pessoalmente dezenas de livros sobre temas históricos de seu interesse, recolhendo informações de diferentes fontes. No entanto, essas obras-primas estavam ocultas e ninguém tinha acesso a elas.


Esta questão que o Álvaro nos traz ainda se encontra com muita frequência. É sabido que há um conjunto de características comportamentais encontradas na Perturbação do Espectro do Autismo, que podem ser igualmente encontradas, ainda que com as devidas diferenças em outras perturbações. Sejam os comportamentos mais ritualizados encontrados no Espectro do Autismo mas também na Perturbação Obsessivo Compulsiva. As dificuldades na interacção social que pode ser observado na Perturbação de Ansiedade Social também. Ou então comportamentos mais bizarros que podem ser enquadrados numa Perturbação do Espectro da Esquizofrenia. Para além disso, quando estas pessoas são observadas já na vida adulta e a história clinica não é adequadamente explorada, há uma probabilidade de que o padrão de funcionamento encontrado possa ser entendido como sendo pertencente a uma Perturbação da Personalidade.


Além disso penso que o facto de algumas pessoas no Espectro do Autismo apresentarem um nível de maior funcionalidade, nomeadamente ao nível social, leva a que muitos profissionais descartem logo à partida a hipótese de poder tratar-se de uma Perturbação do Espectro do Autismo. No entanto, aquilo que podemos verificar é de que apesar das pessoas receberem intervenção farmacológica e psicológica para a sua condição continuam grande parte das situações a não verem melhorias comportamentais e com uma manutenção da sintomatologia. Sendo que seria expectavel que a partir do momento em que foi feito o diagnóstico e ao fim de um ano de intervenção conjunta se pudesse observar melhorias. No entanto a sintomatologia ansiosa e depressiva vai-se mantendo e além disso a própria pessoa sente que continua sem ter compreensão da sua própria pessoa, dos Outros e do Mundo. Facto que é uma constante nas pessoas autistas. É então fundamental poder sensibilizar as Universidades a leccionar cursos na área da saúde, seja de Medicina ou Psicologia, além dos próprios profissionais já no activo, para aquilo que caracteriza um quadro de funcionamento de uma Perturbação do Espectro do Autismo no adulto.

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