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O meu primo do Japão

O meu primo do Japão vinha a Portugal. Finalmente ia conhece-lo. Também estava algo receoso. Afinal de contas o facto de ser uma pessoa autista leva-me a ficar mais constrangido com situações novas e poventura inesperadas. O meu tio, irmão do meu pai, foi para o Japão há muitos anos. Nunca o cheguei a conhecer. A minha mãe diz que ele é uma fotocópia do meu pai. O meu pai também é autista, desconriu depois de mim. Na verdade já ambos sabiamos, mas eu fui diagnosticado primeiro e depois o meu pai também quis ter a certeza. A minha mãe disse-me que o meu tio estava preocupado com o filho. Não saia de casa já fazia seis anos, e os últimos três não fazia nada fora do quarto. Ao ponto de terem de mudar o quarto dele para a suite com casa de banho. Lembro-me na altura de ter perguntado à minha mãe se o meu primo tinha alguma coisa semelhante a mim. Aquilo parecia-me tudo tão conhecido. Algo parecido tinha-me acontecido quando estava no 7º ano e o António convenceu os colegas da turma a fazer-me bullying. Não consegui aguentar mais de dois meses e o resto do ano lectivo fiquei fechado em casa e uma boa parte do tempo restringido ao meu quarto. A minha mãe disse-me que não sabia, mas que tinha ouvido o pai falar com o irmão sobre uma coisa de nome Hikkimori.


Claro que não consegui aguentar nem dois minutos até me enfiar no aurto e ligar o Pc para começar a investigar o que seria aquilo. O resultado da primeira pesquisa dizia: Hikikomori é um termo japonês baseado na combinação de duas palavras: hiku que significa "puxar" e komoru que significa "retirar-se". Aquilo prometia, pensei. Lembro-me que naquele dia ficquei mais de sete horas no computador a pesquisar. Os meus pais já sabem que quando tenho estes acessos de hiperfoco nem vale a pena dizer-me nada. Mas quanto mais lia, mais ficava com a impressão que estava a ler coisas sobre a minha pessoa.


Simultaneamente descobri todo um mundo em volta do Anime e Manga. Não é que não tivesse ouvido, mas não tinha puxado o meu interesse. Mas tudo isto do Hikkimori cruzava com a cultura pop japonesa, assim como todo um conjunto de outras questões de saúde mental. E sobre saúde mental eu já sabia uma coisa ou duas, até porque é um dos meus interesses especificos. Quanto mais lia mais me dava conta da designação isolado em casa. E tudo aquilo continua a soar-me tão familiar.


O Hikikomori é uma forma de retraimento social patológico ou isolamento social que se prolonga por mais de 6 meses, com prejuízo funcional significativo ou angústia associada ao isolamento social. O fenómeno Hikkimori começou a surgir no Japão na década de 90 do século XX e desde então tem sido reportado vários casos semelhantes em outros paises asiáticos, mas não só. Mas este fenómeno não se encontra nos manuais de diagnóstico, pensei eu. E continuava a pensar porque razão não pensaram logo em autismo? Pode ler-se que há uma variedade de factores biopsicossociais complicados que estão na origem do hikikomori, e sabe-se que o hikikomori tem uma comorbilidade com várias perturbações psiquiátricas, incluindo a perturbação de ansiedade, depressão, personalidade, dependência da Internet e perturbação do espetro do autismo. Mas quando olhamos para as pessoas autistas também verificamos que existe todo um conjunto de outras condições psiquiátricas associadas. E a ansiedade e a depressão estão presentes, muitas vezes desde sempre. Até porque algumas pessoas autistas apresentam evidência de Anedonia e Alexitimia. Mas porquê este nome de Hikkimori e não Autismo, perguntava-me? É verdade que a cultura oriental e a japonese em particular não estavam dentro dos meus interesses e como tal nunca me tinha dado conta das difrenças culturais. Mas autismo é aqui em Portugal tal como no Japão, perguntava-me de forma retórica.


No dia a seguir pedi à minha mãe para me mostrar uma fotografia do meu primo. Disse-lhe que tinha de me preparar para o receber e que isso era uma parte importante. Ela não desconfiou que eu estava mais interessado em conseguir perceber se o meu primo tinha um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e não de Hikkimori. Obviamente que o autismo não se vê na cara da pessoa, mas todos nós sabmemos que há expressões tipicas nas pessoas autistas e que se enquadram naquilo que são algumas das características de alheamento, por exemplo. Assim que vi a foto do meu primo as minhas certezas acerca da minha tese aumentou. O olhar do meu primo era tão vago quanto o meu, mesmo que escondido por detrás das lentes dos óculos. E tal como muitas pessoas autistas costumam dizer - Nada como uma pessoa autista para reconhecer outra! Mesmo a postura corporal do meu primo, apesar de na fotografia estar sentado parecia evidenciar aquilo que muitas pessoas autistas falam acerca de não saber como colocar o seu corpo ou parte dele em determinadas situações, tal como esta de tirar fotografias. Por isso eu nunca gostei de tirar fotografias. Nunca sei como me devo colocar ou o que é que as pessoas esperam que eu faça.


Estava na altura de falar com o meu pai para investigar sobre o meu tio. Não tinha muitas esperanças de conseguir arrancar alguma informação do meu pai, até porque ele é um tumulo ainda maior do que eu. Mas a intensidade da minha curiosidade em saber mais e mais sobre tudo isto estava a tomar conta de mim, e por isso arrisquei. Curiosamente não foi preciso muito para o meu pai falar. Disse-lhe que gostaria que ele me contasse sobre quem era o tio para eu saber um pouco mais e o que esperar quando eles chegassem a Portugal.


O meu pai diz que desde a infância ele manifestou traços de grande ansiedade e até mesmo com alguns episódios de pânico e de de ansiedade social. O meu pai sabia o que estava a dizer, até porque é enfermeiro com especialidade em saúde mental. Para além disso, apresentava também traços obsessivo-compulsivos relevantes, com tendência para a ordem e a precisão, e rigidez moral. Apresentava desde a infância um padrão comportamental caracterizado por interesses restritos e repetitivos. Nomeadamente, um profundo interesse por Manga e Anime e que foi mantido até ao presente. Percebo porque é que o meu tio deve ter ido bem cedo para o Japão. Talvez tenha ido atrás do seu grande interesse. O meu pai continuou a dizer que ele sempre tinha mostrado uma forte adesão à rotina, dificuldades na reciprocidade sócio-emocional, alterações de empatia, hiper-reatividade a estímulos sensoriais. Sempre foi uma criança obstinada e teimosa, com poucos amigos e que tinha preferido estudar em casa. Não se interessava pelas brincadeiras das outras crianças e tinha dificuldade em estabelecer novas amizades. Gostava de colecionar objectos e era extremamente cuidadoso com os seus livros e brinquedos, e não gostava que os outros lhes tocassem. Na adolescência, destacava-se em Matemática e Física, mas apresentava fraco desempenho noutras áreas. Passava a maior parte do seu tempo livre em actividades solitárias, como jogar videojogos. Durante a adolescência, era frequentemente gozado pelos colegas de escola ou vítima de bullying.


Eu já tinha desligado há alguns minutos, mas a informação que o meu pai estava a dizer toda ela soava a Pertubação do Espectro do Autismo. Quando me virei para o meu pai ele já sabia o que lhe ia perguntar - Sim, o teu tio também é autista e muito provavelmente o teu primo também ainda que o meu irmão continue a insistir nesta coisa do Hikkimori.


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