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Foto do escritorpedrorodrigues

O meu autismo, o meu corpo!


"A beleza começa quando decides ser tu própria."

Coco Chanel


Eu gostava de ser mais alto, diz Carlos, um jovem adulto de 24 anos com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (nome fictício). Estive a ler informação sobre dados antropométricos e percebi que sou de baixa estatura e que a Sociedade apresenta um percentil bastante acima do meu! continua. Carlos mostrou que tinha estado empenhado em reforçar a sua vontade em ser mais alto. E ainda mais aquilo que haveria de dizer de seguida. Já decidi que para isso vou fazer uma cirurgia para acrescentar mais uns centímetros de osso nas minhas pernas. Já investiguei e vi que isso é possível, refere. E além disso as cirurgias plásticas que as pessoas fazem para alterar partes do seu corpo é cada vez mais aceitável e não vejo porque não aceitam que eu faça esta mudança, continua. Há pessoas que mudam de sexo, porque é que eu não poderei mudar de tamanho? questiona mais alterado na voz. Cada vez que me tento aproximar de alguma rapariga vejo que ela não me quer por causa da minha altura, partilha. Eu já perguntei uma vez a uma delas quando ela não quis marcar novo encontro e ela disse-me que sim, que era por causa disso, acrescenta.


Esta questão do Carlos, ainda que mal comparado, fez-me pensar em algumas situações que fui vivendo, seja com outras pessoas, mas também comigo próprio. Até porque também eu tenho um corpo. E este corpo nem sempre foi igual, seja do ponto de vista físico, observável, mas também interno, vivenciado, sonhado, além de o ser também existencial. Lembro-me por exemplo que a determinada altura da minha pré-adolescência queria ter caracóis. E como via as pessoas, principalmente mulheres, com cabelos lisos e depois de irem ao cabeleireiro com caracóis, percebi que aquilo era uma possibilidade. O porquê disso dos caracóis? Provavelmente por pressão percepcionada pelos pares e modelos sociais na altura. Quem nunca viveu a pré-adolescência nos anos 80 não sabe de toda a indumentária existente ao nível dos cabelos e penteados existentes! Mas também já acompanhei pessoas com experiências de dismorfia corporal, quando apresentavam um diagnóstico de Perturbação da Conduta Alimentar, e que as pessoas conhecem mais fácil e rapidamente por Anorexia (ainda que existam outras variantes, e.g., bulimia, etc.). Ou então, aquilo que ainda hoje se assiste, das corridas ao ginásio ou do jogging de fim de semana, a partir de março-abril, atendendo a que a época balnear se aproxima. E se pensam que é uma teoria da conspiração, tenham atenção à publicidade nas televisões, mas também nos outdoor! Seja como for, esta questão do corpo não é neutra. Ainda que estes exemplos, e muitas situações que sejam faladas na clinica e também na investigação em relação ao corpo seja olhado de uma perspectiva negativa. Ou seja, dos aspectos negativos que o corpo expressa ou é percepcionado pelos próprios, mas de uma forma negativa. Parece haver um descontentamento constante acerca do corpo. E não será por acaso que as dietas se continuam a multiplicar. E em contrapartida, quando procuramos falar do corpo pela positiva, parece que há uma ideia de vaidade implícita, questões não resolvidas com a auto-imagem, Ego, Eu, etc., mas também causador de inveja. E como tal, as pessoas parecem ser orientadas para não falar de forma positiva do seu corpo. Mas porquê? Porque não poderão as pessoas gostar do seu corpo? Viver bem e confortável com o seu corpo? Sentirem prazer com o seu corpo, sem que isso tenha necessariamente que significar uma relação sexual com outra pessoa ou masturbação? Mas as questões também podem ir ao ponto de pensarmos porque é que o pensar sobre o corpo se limita apenas ao corpo físico em si, às suas mudanças desenvolvimentais e outras, e não também à experiência vivida de envolvido do corpo da pessoa no mundo? Aquilo que o embodiment se procura debruçar.


Uma coisa é certa, a imagem corporal é uma construção multidimensional e multifacetada com dimensões positivas e negativas. Historicamente, a investigação sobre a imagem corporal tem-se centrado na dimensão negativa (e.g., insatisfação corporal), mas, mais recentemente, os investigadores têm vindo a centrar a sua atenção na exploração de aspectos da imagem corporal positiva, a fim de proporcionar uma compreensão mais abrangente e holística. Ou seja, podermos falar da apreciação e a aceitação do corpo em termos da sua aparência e funcionalidade, estando consciente e respondendo às necessidades do corpo, e filtrando as mensagens sociais de uma forma protectora do corpo. Até porque, a investigação demonstrou que uma imagem corporal positiva contribui para resultados positivos (e.g., bem-estar, adoção de comportamentos adaptativos relacionados com a saúde, etc.), para além da ausência de uma imagem corporal negativa. Até porque é importante continuar a perceber como é que eu vejo as funcionalidades do corpo, as coisas que o meu corpo faz e não faz, mas também a aparência, ou seja como eu me vejo a mim próprio e aos outros.


Mas da mesma forma que tem havido um perspectivar do corpo de forma negativa. Também tem havido um olhar do corpo das pessoas com determinadas condições, características e diagnósticos, em grande parte pelos aspectos da funcionalidade e dos aspectos negativos envolvidos, seja nas situações com um impacto mais ao nível físico do funcionamento do corpo ou de parte dele, mas também do ponto de vista psicológico e psiquiátrico. Por exemplo, no caso do autismo, é um exemplo muito clássico deste aspecto. Ou seja, o corpo da pessoa autista é olhado pelos aspectos de características comportamentais presentes e que leva a determinados comportamentos observados a nível da expressão motora, seja o balancear do corpo, os maneirismos motores, tiques, etc. Mas não se tem pensado sobre a forma como as próprias pessoas autistas pensam o seu corpo, o percepcionam, ainda que os investigadores e clínicos que se debruçam sobre os aspectos da interocepção sejam aqueles que mais investigam e reflectem. Mas também aqui não se tem pensado como é que a pessoa autista não somente pode pensar o seu corpo, mas também aprender a gostar dele.


Mas mais recentemente, e com um olhar mais alargado para a expressão comportamental da pessoa autista, e mais especificamente para o autismo no feminino, o corpo tem surgido mais frequentemente na mira da investigação e da prática clinica, até porque é uma questão mais frequentemente trazida para a terapia. E o cruzamento que tem havido entre a Perturbação do Espectro do Autismo e a Perturbação da Conduta Alimentar, tem também levado a olhar de uma outra forma para o corpo da pessoa autista. E sim, a investigação tem demonstrado de uma maior prevalência e sobreposição de questões relacionadas com a conduta alimentar (i.e., anorexia, bulimia, ARFID, etc.) e o autismo. No entanto, os aspectos da sensorialidade e da forma como esta é expressa no autismo, também ela tem trazido um olhar para o corpo da pessoa autista. Até pelos aspectos muito frequentemente presentes nas pessoas autistas das hipo e das hipersensibilidades, mas também dos comportamentos de hipervigilância em relação às sensações corporais e do se sentir socialmente isolada ou diferente. Além dos aspectos mais recentemente abordados do comportamento de mascaramento social e da supressão consciente e não consciente de determinados comportamentos que se sabem naturais na pessoa autista.


E um outro aspecto em relação às experiências sensoriais das pessoas autistas, tem sido o facto de se ter percebido que as pessoas autistas associavam as suas diferenças sensoriais a experiências corporais positivas, semelhantes à imagem corporal positiva e ao embodiment (e.g., sentir alegria e prazer no corpo enquanto o estimula (aquilo que é frequentemente designado por stimming). É importante de referir que as pessoas autistas descrevem que esta sensação de liberdade em relação aos seus comportamentos e ao seu corpo os leva a um sentido de aceitação em relação aos mesmos, corpo, comportamentos e Self.


A experiência vivencial no autismo por vezes assemelha-se a um dualismo cartesiano, a uma ligação entre dois mundos constituídos por massas diferentes, corpo e mente. E algumas vezes nas pessoas autistas esta experiência é vivida como separada. E também por isso a experiência e vivência do corpo na pessoa autista pode ter uma consciência mais limitada, precisamente pela maior escassez da informação passada nesta ligação. E como tal ouvimos certas vezes de pessoas autistas, Não tenho consciência da minha aparência! ou então A experiência no meu corpo é predominantemente sensorial, baseada em certas dobras da pele ou na forma como certas coisas se tocam, e isso nunca se baseou no facto de os meios de comunicação social dizerem que não devemos ter coxas que se tocam. Era mais do género, meu deus, odeio mesmo a sensação que isso dá. Estas experiências chegam a ser tão pessoalizadas e singulares e ao mesmo tempo tão intensas que imergem a pessoa de tal forma que o corpo passa a ser aquela experiência. Quase como se o corpo fosse apenas aquela parte. E num outro momento diferente e com uma sensação diferente, o corpo e a sua noção passasse a ser uma parte diferente. Nesse sentido lembro-me de uma vez ter ouvido, O meu corpo são corpos diferentes. Não há só um corpo ou um meu corpo. Há dias em que passo exclusivamente ligado a uma parte do corpo e essa parte é o meu corpo durante esse momento. E como tal parece ficar diferente pensar em corpos diferentes de pessoas diferentes. Mas a verdade é que para muitas pessoas autistas, temos corpos diferentes. E como tal é fundamental compreender porque é que eles experienciam o mundo da forma como o fazem. E isso parece vital para que cada uma das pessoas autistas se torne mais (re)conectado ao seu corpo autista, e que isso possa ser feito de uma forma constante e contínua.


À medida que aprendo mais sobre as minhas diferenças sensoriais, passo mais tempo a analisar-me, e inevitavelmente, isso reflecte-se em mim, diz Cláudio (nome fictício). Começamos a pensar sobre nós próprios. Mas esta maior compreensão ajudou-me a ligar ao meu corpo e assim já consigo perceber melhor porque ele faz o que faz. Mas também sei que isto passou a ser possível e da forma como o faço com o meu diagnóstico. E ele só chegou ao 34 anos. Até lá foi como se não tivesse corpo, conclui.


Sou o que faço. O meu corpo é o que faço, diz António (nome fictício). Um aspecto fundamental para nos sentirmos ligados ao nosso corpo era através de experiências físicas. Este é o momento em que me sinto mais ligado ao meu corpo - não como se estivesse num lugar de piloto, não com a cabeça um pouco mais perto do meu corpo - totalmente imerso no meu corpo. Não penso noutra coisa; parece-me natural, refere.


O meu corpo é a minha voz, diz Clara (nome fictício). Confundem-se. Seja quando falo, mas também quando faço determinados sons, fico centrada nas tonalidades e naquilo que o meu corpo sente ao falar. Por isso o meu corpo parece uma onda, neste caso sonora, com altos e baixos e com muitos picos, conclui.


Mas o corpo não existe no vazio ou apenas na cabeça da pessoa. O corpo existe no mundo. E os ambientes sociais são geralmente vistos como restringindo ou bloqueando o sentido de autonomia das pessoas autistas, com o corpo visto por um olhar opressivo - em vez de objectivo. Assim, muitas pessoas autistas descrevem que, em vez de quererem ter bom aspecto, queriam ter o aspecto correcto. O meu corpo é o que os outros dizem, diz Bruno (nome fictício). Eles é que dizem como querem que o meu corpo seja. Se não for estar dessa forma é estar sem corpo, ausente, assim não me dizem nada, conclui.


As mudanças do meu corpo sempre foram muito difíceis, diz Carla (nome fictício). Eu não queria que o meu corpo tivesse todas aquelas coisas que foram aparecendo. Eu não tinha desejado isso, principalmente por começaram a aparecer coisas que eu não conseguia compreender ou sequer controlar, desabafa. Consegui compreender mais tarde o porquê disso acontecer. O diagnóstico salvou-me. O diagnóstico devolveu-me o corpo, conclui.


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