top of page

O meu amor é autista

Foto do escritor: pedrorodriguespedrorodrigues

Eu só queria comprar alfazema! pensava Lurdes (nome ficticio). Tinha à frente algumas seis ou sete pessoas na fila. Não costuma estar tantas pessoas na florista! pensava. Mas o que é que se podia passar? questionava-se. As pessoas à sua volta levavam frequentemente Lurdes a questionar-se. Por que é que as pessoas dizem coisas se depois não as fazem? Ou fazem coisas que sempre disseram que nunca fariam? Por que é que falam coisas que não sabem ou sem grande sentido de utilidade?


Está na fila para as rosas? alguém atrás da Lurdes questionou-a. Demorou algum tempo a responder. Eu quero Alfazema! disse. A cara da pessoa parecia estranha ao ouvir aquilo. A Lurdes não percebeu. A pessoa passou para a sua frente. A Lurdes ainda menos percebeu. Ficou ali algum tempo até conseguir dizer alguma coisa à pessoa. Por que é que me passou à frente? questionou-a, Por que estou para as rosas, respondeu-lhe a pessoa. A confusão era muita e Lurdes parecia não ter percebido que havia uma espécie de duas filas. Mas as pessoas também pareciam estar num qualquer amontoado estranho que dificultava a situação. E eu quero Alfazema! disse-lhe Lurdes. Por que é que me passou à frente? continuou Lurdes. Já lhe disse que quero rosas! retorquiu a pessoa num tom de voz mais alto e altivo. Lurdes não percebeu o altivo, mas o som alto incomodou-a ainda mais que tudo aquilo. Eu estou aqui na fila há mais tempo! Não é justo passar-me à frente porque vai comprar rosas! disse Lurdes num tom mais alterado e alto ainda que não o tenha percebido. Escusa de gritar comigo! disse-lhe logo esta outra pessoa. Eu não estou a gritar! retorquiu Lurdes, A senhora é que me gritou! acrecentou. A senhora riu-se. Provavelmente porque não terá gritado. A questão é que a Lurdes tem uma maior dificuldade com as questões sensoriais auditivas e toda aquela situação já estava a ser demasiado. Entretanto alguém da fila virou-se para trás e sem a Lurdes perceber começou a falar consigo dizendo-lhe o que a outra repetia. As pessoas estão aqui para as rosas! Se quer Alfazema tem de esperar ou então tem de ir a outro sitio! vincou. Quem é que vai comprar Alfazema num dia destes! terá dito alguém no principio da fila. Lurdes comecou a ficar mais agitada. Todo o seu corpo parecia gritar isso mesmo, ainda que a sua voz não se fizesse ouvir. As pessoas vêm para aqui nestes dias só para arranjar confusão! Se tem problemas de amor vá resolvê-los noutro sitio! alguém na loja terá dito. Sem ninguém estar à espera Lurdes cai redonda no chão. A epilepsia não avisa quando chega. Mas a agitação de toda aquela situação parece não ter ajudado. Ao acordar, ainda deitada no chão viu um coração a pairar e nele estava escrito São Valentim.


Curioso! disse Lurdes baixinho. Ainda estava a recuperar da situação. Quando se fala no dia dos namorados, pensa-se provavelmente em romance, rosas, chocolates e talvez até na seta do Cupido! continuou já mais alto. As pessoas olhavam-a estupefactos. Embora a ligação com a epilepsia seja muito menos reconhecida, pensasse que o São Valentim devia ser reconhecido este mês! continuou. Há muitas teorias para explicar a ligação do São Valentim à epilepsia e pode ser difícil chegar ao cerne das suas origens. Os historiadores apresentam diferentes teorias para explicar como São Valentim se tornou um “santo da epilepsia”. Alguns sugeriram que existe uma forte semelhança fonética na língua alemã entre as palavras “Valentim” e “caído”. E a epilepsia ficou conhecida como “a doença que cai” durante séculos! concluiu antes de se começar a levantar. A senhora disse que queria Alfazema certo? perguntou-lhe a dona da florista. Passe à frente que eu atendo-a já! rematou. Não, não faz sentido. Há pessoas para as rosas que estão à frente, excepto esta senhora que à pouco me passou à frente! referiu.


A Lurdes, tem 54 anos. Descobriu a epilepsia antes do autismo. A epilepsia sempre foi mais visivel e por isso parece ter sido mais fácil de diagnosticar. O autismo chegou mais tarde, apesar de ter estado sempre lá, mas era mais silencioso. Ainda que os meltdowns da Lurdes se fizessem sentir. Mas diziam que era da sua epilepsia, diziam.


Não sei se a Lurdes sabe do outro significado do São Valentim mais ligado ao amor e aos relacionamentos amorosos. Mas isso é algo que diz inteiramente respeito a si. Não vou partir do principio que por ser autista não sabe ou não tem interesse no São Valentim ou no amor e nos relacionamentos amorosos.


Também não me parece importante desatar a escrever dicas de como a Lurdes e as pessoas autistas devem procurar viver o seu dia de São Valentim. Até porque ao fazê-lo estaria a assumir que não o sabiam ou não estariam interessados. E essa generalização é perigosa e pertuadora desse estigma. Além de a Lurdes e as outras pessoas autistas poderem ter a sua própria maneira de viverem estes e outros dias, assim como as suas relações amorosas. E se o quiserem partilhar devem ser os próprios a fazerem.


Mas posso dizer que é absurdo dizer que as pessoas autistas não amam ou não querem amar. Não faz sentido, seja do ponto de vista cientifico e ético, mas também humanista. E que apesar de podermos observar um determinado padrão mais comum de comportamentos nas pessoas autistas, ainda assim verifica-se uma grande heterogeneidade e variabilidade na sua expressão. Mas posso dizer que é importante continuar a fazer para que as pessoas autistas possam ser diagnosticadas mais preococemente e que com isso possam usufruir de mais e melhor intervenção e cuidados de saúde ao longo da vida, desde a intervenção precoce até à idade sénior. Assim como é fundamental continuar a sensibilizar e informar a Soceidade sobre a realidade do autismo e das pessoas autistas, e que estas últimas possam estar cada vez mais envolvidas neste processo. Até para que se possam quebrar crenças e mitos e construir uma outra e nova forma de poder olhar a diferença e o autismo. As pessoas, sejam autistas ou não autistas, precisam de ter espaço onde cresçam em segurança e amadas por aquilo e quem são. Só assim será possivel e de uma forma saudavel desejarem amar outra pessoa, assim como a si próprios. Ainda que no caso das pessoas autistas se possam encontrar e observar formas diferentes deste amor se expressar.


Mas o amor, seja dirigido ao outro, mas também a si próprio, é uma expressão variável e heterogénea. E por isso, sejam rosas ou alfazema, a celebração do amor pode estar em qualquer um deles. Até porque nenhum de nós faz ideia do que tinha levado a Lurdes à florista para comprar alfazema!


28 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


Informação útil:

Cadastre-se

©2018 by Autismo no Adulto. Proudly created with Wix.com

bottom of page