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O futuro do autismo

"- Pelo menos há luz no fundo do túnel.", ouvimos dizer às vezes. É a voz do futuro e da esperança nele. O futuro também é isso, esperança. E também receio, medo do que irá ser. É comum pensarmos no que vai ser a nossa vida no futuro. Não se trata de fazer futurologia, mas sim prever de acordo com o conhecimento actual e acumulado até então pelas nossas experiências. É assim na nossa vida, e também é assim no Espectro do Autismo. Desde 1943 que temos assistido a um conjunto grande e heterogéneo de contributos para a compreensão do Espectro do Autismo e das Perturbação do Neurodesenvolvimento. Os últimos 15 anos têm sido profícuos no número e na qualidade de trabalhos de investigação básica, por exemplo ao nível das neurociências e da genética, mas também nos ensaios clínicos para o desenvolvimento e melhoria dos protocolos de intervenção a nível psicológico e psiquiátrico. Mas não esqueçamos que a própria comunidade autista tem estado cada vez mais activa e participativa e que isso também tem tido impacto no desenvolvimento e orientação dos trabalhos de investigação e das políticas de saúde que tem sido produzidas a este nível. Já se tem falado de uma pandemia de autismo atendendo ao número de casos que aparentemente têm sido diagnosticados, nomeadamente na população adulta. Mas afinal qual será o futuro do Autismo?

As perturbações do neurodesenvolvimento foram incluídas pela primeira vez no DSM-III, para a categoria que compreende a perturbação autista. E mais recentemente, as perturbações do desenvolvimento neurológico foram introduzidas como uma categoria abrangente de perturbações na DSM-5. Esta nova secção substituiu um capítulo anterior que foi denominado “Perturbações geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência”. Na CID-11, a mais recente revisão da Classificação Internacional de Doenças publicada pela OMS, as perturbações do desenvolvimento neurológico ganharam ainda mais destaque ao se tornar parte integrante do título do capítulo sobre psiquiatria: "Perturbações mentais, comportamentais ou do desenvolvimento neurológico".


No DSM-5, as perturbações do desenvolvimento neurológico são definidas como um grupo de condições com início no período de desenvolvimento, induzindo déficits que produzem prejuízos no funcionamento. Estas compreendem a Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental; Perturbação da comunicação; Perturbação do Espectro do Autismo; Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção; Perturbações motoras do desenvolvimento neurológico, incluindo Perturbação de tiques; e Dificuldades de Aprendizagem Especificas. A classificação das Perturbação do desenvolvimento neurológico na CID-11 não diverge significativamente do da DSM-5. É ainda importante sublinhar que todos as perturbações do desenvolvimento neurológico na DSM-5 podem incluir o especificador "associado a uma condição médica ou genética conhecida ou factor ambiental".


A validade das perturbações do desenvolvimento neurológico como construto é suportada pelas altas taxas de comorbidade entre várias perturbações nesse grupo de diagnóstico. Por exemplo, vários estudos mostraram que 22% a 83% das crianças com PEA apresentam sintomas que atendem aos critérios do DSM-IV para PHDA e vice-versa, 30% a 65% das crianças com PHDA apresentam sintomas clinicamente significativos de PEA. E embora não façam parte dos critérios da PEA, as dificuldades intelectuais e desenvolvimentais ou da linguagem associadas são frequentes na PEA e sua presença deve ser especificada. As perturbações do desenvolvimento neurológico compartilham a característica de serem diagnosticados mais frequentemente em homens do que mulheres. Sendo que o DSM-5 menciona proporções do homem para a mulher de 4:1 para o diagnóstico de PEA, 2:1 para o diagnóstico de PHDA em crianças e 1,6:1 e 1,2:1 para Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental leve e grave, respectivamente. E também daí a ideia de reunir essas várias perturbações num único grupo de diagnóstico acabou por chegar com a DSM-5.


Os sintomas das várias perturbações do desenvolvimento neurológico foram descritas muito antes dos conceitos de diagnóstico serem delineados entre si em meados do século XX. Por exemplo, a primeira descrição conhecida do déficit de atenção foi publicada em 1775 pelo médico alemão Melchior Adam Weikard, sob o nome de Mangel der Aufmerksamkeit / Attentio volubilis, num livro intitulado Der philosophische Arzt. Weikard dedicou seis páginas à descrição do déficit de atenção. Ele descreveu como é que os estímulos sensoriais capturavam a atenção do paciente e o desviavam dos seus pensamentos: "... é mais fácil perceber impressões através dos órgãos dos sentidos do que formar ou reter idéias, recuperar memórias passadas ou realizar outras operações reflexivas. Cada sentido pode perturbar-nos nos nossos pensamentos, distrair-nos do nosso objeto e chamar a nossa atenção para outra coisa. De todos os sentidos, isso ocorre com mais frequência na audição e na visão. O resultado é a distração, falta de atenção, desatenção.”, dizia Weikard. O termo latino "volubilis" vem do verbo "volvere" (virar). O significado literal de Volubilis é "facilmente rotativo" e, por extensão, "inconstante" ou "alterado". Essa imagem de uma rotação permanente de ideias às vezes é usada por alguns pacientes que relatam o sentimento subjectivo de que a sua atenção não se sustenta, mas gira num continuo.


Por sua vez, os termos “idiotice” e “imbecilidade” são atestados pelo Oxford English Dictionary no início do século XVI. Além disso, os comportamentos consistentes com o autismo foram descritos muito antes da categoria de diagnóstico ser nomeada e definida por Leo Kanner em 1943 e Hans Asperger em 1944. Mas por exemplo, os especialistas russos supõem que muitos dos “tolos” ou ascetas da igreja ortodoxa que vagueavam pela Antiga Russia exibiam comportamentos autistas, sendo notoriamente não-verbais, impermeáveis às convenções sociais e indiferentes ao clima frio ou à dor.


Com a crescente apreciação da considerável sobreposição fenotípica entre as perturbações do desenvolvimento neurológico, houve uma tendência geral de nos afastarmos da classificação das perturbações como entidades discretas, para colocá-los dentro de um espectro. E com os avanços na biologia molecular, genética e genómica, as perturbações neuropsiquiátricos são cada vez mais agrupadas pela sua biologia e, em particular, pelos genes e variantes que foram encontrados na base da sua causa. A heterogeneidade clínica nas perturbações do desenvolvimento neurológico é, no entanto, reflectida na heterogeneidade genética extrema, com um diagnóstico genético não possível na maioria dos casos.


Os estudos genéticos das doenças complexas seguiam tradicionalmente um caminho de fenótipo para genótipo para gene, uma abordagem chamada "genética directa". A maioria dos genes de doenças, no entanto, foi identificada por uma abordagem conhecida como "genética reversa", ou seja, a identificação de um gene devido à sua localização cromossómica, sem o conhecimento prévio de seu produto proteico ou da via molecular na qual ele funciona. E o desenvolvimento de técnicas para gerar grandes quantidades de dados, conhecidos como Big Data, genéticos por genotipagem em todo o genoma permitiu que a pesquisa genética se concentrasse cada vez mais no uso de abordagens imparciais para a identificação de genes em todo o genoma. Isso levou ao conceito de "fenotipagem reversa".


Na última década, acumulam-se evidências de que as perturbações do neurodesenvolvimento infantil, como Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental, Perturbação do Espectro do Autismo e Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção , compartilham alelos de risco genético específicos entre si, bem como perturbações psiquiátricas, particularmente a esquizofrenia. E isso tem levado a propor o modelo de um continuum do neurodesenvolvimento, no qual as perturbações do neurodesenvolvimento, incluindo a esquizofrenia, são vistos como representando a ampla gama de resultados que decorrem do desenvolvimento cerebral interrompido ou desviado. Assim, as perturbações do neurodesenvolvimento infantil (DID, PEA e PHDA) e as perturbações psiquiátricas dos adultos (incluindo a Perturbação Bipolar e a esquizofrenia) poderiam ser melhor conceptualizadas como estando num continuum etiológico e no desenvolvimento neurológico, em vez de serem definidos como entidades discretas. O modelo é baseado em evidências emergentes de fatores de risco genéticos e ambientais compartilhados e prevê que provavelmente haja mecanismos patogênicos sobrepostos.


Inclusive propuseram a hipótese do gradiente neurodesenvolvimental, na qual as perturbações são classificadas de acordo com a gravidade do comprometimento neurodesenvolvimental. As características que contribuem para essa classificação são a idade de início em relação à idade típica de início de cada uma das perturbações, a gravidade do comprometimento cognitivo associado e a persistência do comprometimento funcional. Embora esse modelo possa parecer uma simplificação grosseira do enigma que constitui o diagnóstico, ele postula que o grau de comprometimento do desenvolvimento neurológico é actualmente o mais reconhecível desses recursos e faz previsões claras sobre a importância relativa das classes mais prejudiciais de variantes genéticas raras.


A população com PEA é etiologicamente e fenotipicamente heterogénea. A etiologia genética da PEA não é menos variada. A heratibilidade do autismo é alta, com estimativas variando de 50% a 90% e as taxas de recorrência entre irmãos não gémeos aproximam-se de 20%. A PEA não apenas compartilhou a sobreposição fenotípica com muitas formas sindrómicas, como a síndrome de Down, Prader, síndrome de Willi / Angelman e a Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental ligado ao X frágil (cerca de 4% a 5% dos casos de PEA), mas como referido anteriormente, também é uma das perturbações para os quais se demonstrou que as variantes raras têm um forte efeito. Mais de 100 genes e regiões genómicas foram associados à PEA, e mais de 800 genes foram sugeridos para desempenhar um papel na PEA.


O uso histórico dos diagnósticos e classificações categóricas falhou nas Perturbações do Desenvolvimento Neurológico, pois as fronteiras entre as perturbações não são claras e a comorbidade é comum. O continuum do neurodesenvolvimento ressalta a necessidade de abordagens novas e flexíveis para o diagnóstico e a estratificação do paciente, e o alto grau dos múltiplos efeitos dos genes sugere que as abordagens terapêuticas podem ser frutíferas através dos limites do diagnóstico. A taxa de identificação dos genes de doenças acelerou dramaticamente na última década e, com o sequenciamento de exoma e genoma completo tornando-se uma prática cada vez mais rotineira, a abordagem do genótipo primeiro provavelmente espalhar-se-à além do autismo e do atraso no desenvolvimento para incluir os genes associados a outras perturbações psiquiátricas.


Muitas vezes quando falamos do futuro e do avanço tecnológico envolvido neste futuro que já não é futuro mas antes presente, ficamos assustados. Ficamos com receio de perder algum controlo sobre a situação e a pensar que as "máquinas" irão tomar conta da situação actual. E que no caso da saúde e mais especificamente da saúde mental, as neurociências e as técnicas neuroimagiológicas, pensam-se que podem vir a substituir o acto psicológico. Este receio não é novo e vem a tornar-se cada vez maior desde o desenvolvimento rápido destas mesmas técnicas. Quero dizer que apesar de não recear dessa forma sobre o futuro e do avanço tecnológico, penso compreender esse receio. O diagnóstico do autismo continuará a ser clinico, mas a complexidade deste, poderá levar à introdução destas outras metodologias que possam ajudar o clínico a fazer um trabalho ainda melhor. E talvez esse seja a máxima a ter em conta, a melhoria do diagnóstico e da validade do mesmo para a condução de uma melhor intervenção junto da pessoa diagnosticada.

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