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O espectro humano

Quantas vezes já te disse para não pintares a mãos? dizia-lhe a mãe. Ao fim destes anos todos ainda não aprendeste que isso não se faz? questionava-o o pai. Vocês não percebem, respondeu-lhes prontamente o filho. Esta semana na aula de expressão artística aprendemos a deixar que as cores de dentro de nós transpareçam nesta fronteira que limita a visão dos outros, também conhecida por pele! acrescenta-lhe o filho.


Os pais parecem ter ficado muito na mesma. O filho não, até porque tem feito aquilo a que se chama uma travessia no deserto. Os seus pais também, ainda que de forma diferente. Mas é suposto, são pessoas diferentes. O filho tem 19 anos e entrou o ano passado em Belas Artes. Entrou no Ensino Superior no mesmo ano em que lhe disseram que tinha um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Os pais sempre disseram que alguma coisa haveria de haver. Mais a mãe do que o pai. Ainda assim, as diversas insistências e persistências de ambos e as múltiplas viagens por médicos e outros especialistas não parece ter-lhes valido de muito, nas suas próprias palavras. O filho chama-se André (nome fictício) não concorda. Diz que aprendeu muito sobre a condição humana neste seu percurso. Penso que seria um desperdício não haver nada para aproveitar nos caminhos que fazemos, repete várias vezes. André tem uma visão funcional do Mundo. Mas também tem uma forma romanceada de o olhar. E sabe-o colocar como ninguém nas suas obras de arte.


Muitas vezes dizem que não percebem as minhas obras, refere André. Diz que normalmente as pessoas olham no sentido errado. E que se ficam pela superfície da obra, como se aquela pelicula, tela ou outro qualquer material fosse impermeável ao olhar, sentir e pensar das pessoas. Penso que acontece o mesmo comigo, diz. As pessoas ficam-se pelas aparências, por aquilo que chamam de meu comportamento, acrescenta. Por vezes sinto-me triste, outras vezes sinto tristeza por eles. Não sabem o que perdem. Não sabem como se perdem, continua.


Procuro compreender desde sempre o Mundo a partir daquilo que faço e também do impacto que isso tem nos noutros, diz André. Comecei a falar mais tarde do que o habitual e do que a maior parte dos meus primos e colegas, refere. Não sentia que precisasse de falar, não pelo menos daquela forma considerada habitual. Mas não percebo o porquê da celeuma, até porque a pessoas sempre comunicaram de formas igualmente diferentes. Mas achavam que eu enquanto criança teria de comunicar daquela maneira e não da forma como eu mais gostava. Nunca gostei que as pessoas mandassem em mim ou sequer que pensassem que têm esse poder sobre a minha pessoa, continua. Na maior parte das vezes chamam-me arrogante, teimoso e outras coisas, por causa disse, menciona. Dizem que eu sou mimado e que apenas quero fazer as coisas da minha maneira! E os outros? pergunta-se. Os outros não gostam igualmente de fazer as coisas da sua maneira? repete


E depois parece que ficam muito mais iluminados e esclarecidos quando alguém lhe diz que eu tinha um diagnóstico, diz André. Primeiro disseram que tinha Perturbação de Oposição e Desafio, depois acrescentaram Perturbação Obsessivo-Compulsiva, e a lista não parou. Também houve quem dissesse que eu não tinha nada. Mas ninguém parecia interessar-se em perguntar o que é que eu achava que tinha. E quando alguns começaram a perguntar, ouviam-me, mas depois falavam com outros e diziam que isso parecia não fazer sentido, refere. E enquanto isso eu andava de mão e mão, sendo que o acto de dar a mão a alguém é algo que sempre me causou bastante aflição. Mas obrigavam-me, agarravam-me até, mesmo que eu demonstrasse desagrado em relação a isso. Chamavam-lhe birras. Ainda hoje dizem que eu faço muitas dessas e de outras birras, continua.


Passei a cansar-me de quase todos pensarem de alguma forma que a culpa disto ou daquilo era minha, diz André. Até mesmo da minha solidão e isolamento. Nunca perceberam as coisas para dentro de mim. E foi assim que eu fui sentido que as minhas obras de arte me ensinaram a me compreender - olhando para dentro de mim. No princípio assustava-me. E os outros ainda mais. Inúmeras vezes os meus pais foram chamados à escola. Fosse porque em determinada altura eu usava apenas uma cor, ou usava apenas uma ínfima parte do total da folha que me davam. Obrigavam-me a preencher o resto da folha, mesmo que eu dissesse que não sabia o que estava lá nessa parte. Diziam-me para inventar. No princípio não percebia muito bem o porquê de ter de inventar, principalmente porque eu estava bem assim, diz.


Está no manual de diagnóstico, ouvia muitas vezes, diz André. Uma vez perguntei ao médico se ele sabia e me explicava como é que aquilo do manual de diagnóstico tinha lá ido parar! Diz que não tinha tempo para me explicar durante o tempo da consulta. Bastava ter respondido - pessoas. Aquilo que está nos manuais de diagnóstico vem das pessoas, da observação das pessoas. E eu sei o que é ser-se observado. Fui observado toda uma vida inteira. A questão é o que é que as pessoas que observam retiram dessa mesma observação para escrever nesses manuais de diagnóstico, continua. Mas na verdade são pessoas, e as pessoas são histórias e vida e isso não está lá nesses manuais de diagnóstico, mas há pessoas que continuam a acenar com esses mesmos manuais como se eles fossem detentores de alguma verdade. E se eu perguntar qual a verdade, dizem-me muitas vezes que se chama de verdade científica, refere André. E fazem-no com um ar tal de que eu nem me deveria atrever a questionar essa mesma verdade científica. Até porque já o fiz e o resultado não foi propriamente positivo, acrescenta.


Sabes que se eu voltasse a querer pintar as minhas da mesma forma não seria possível? pergunta-me o André. Sorrio para ele. A isso eu chamo de Espectro Humano, conclui.


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