Hoje celebramos o dia mundial da árvore, diz Carlos (nome fictício). Hoje também celebramos o dia mundial da poesia, afirma Clara (nome fictício). Curioso, precisarmos de abater árvores para escrever poesia, desabafa António (nome fictício). Nunca tinha pensado nisso, diz Carlos num tom apressado. Nunca haveremos de pensar tudo, continua profundamente Clara. Isso angustia-me tanto, se apenas soubesses, desabafa António. Tinha levado um livro de arte feito por pessoas autistas para podermos falar acerca da expressão artística e da forma singular como cada um de nós o faz. Drawing Autism da Jill Mullin parece-me ter tudo isso. Cada página é um sem fim de outras páginas. Sinto que o livro não tem fim. Tal como a própria poesia. A Clara decidiu abrir o livro numa página ao calhas. Depois do que disse sobre o livro não me fazia sentido abrir na primeira página. Até porque a primeira será igual a qualquer uma das outras. Um principio para algo que não tem fim, referiu Clara para explicar a sua escolha. António parecia visivelmente transtornado. A sua perna não deixava de balouçar. A própria cadeira onde se sentava balouçava conjuntamente. Tinha uma perna com um pequeno defeito. A cadeira, não o António. Devíamos agir, gritou Carlos. Clara assustou-se e soltou um riso nervoso. Mas não deixou de ser um riso. António sorriu também. E no fim sorri também. O teu grito contagiou-nos António, diz Clara. Talvez o devas fazer mais António, aproveitei para dizer-lhe. Tragam um autista para falar em seu nome e ouviremos o que os autistas têm a dizer, gritou novamente Carlos. Pode repetir, disse António aparentemente interessado em perceber. A poesia não se repete, apressa-se Clara. Como assim?, pergunta-lhe António. E se alguém quiser ler novamente?, continua. Ou se alguém não perceber na primeira vez, tal qual eu ainda agora?, concluiu. A poesia não se repete, repete Clara. De cada vez que alguém a repete é uma nova poesia, continua. A entoação, a tonalidade da voz, o respirar entre estrofes. A própria pessoa que se pode emocionar da segunda e não da primeira vez que a leu. Podia continuar e não parar, desabafa Clara. Tal qual este livro de arte que temos aqui e que pode ser aberto em qualquer uma das páginas, percebes António?, pergunta-lhe Clara. Tragam um autista para falar em seu nome e ouviremos o que os autistas têm a dizer, repetiu Carlos. Vês António, tomaste atenção?, pergunta-lhe Clara que não quis deixar de aproveitar o exemplo. Como assim?, retorquiu António. O Carlos repetiu a sua poesia - Tragam um autista para falar em seu nome e ouviremos o que os autistas têm a dizer, e foi diferente!, compreendes?, perguntou-lhe novamente. Tragam um autista para falar em seu nome e ouviremos o que os autistas têm a dizer. As pessoas na plateia ajeitavam-se. A própria plateia ajeitava-se. O autista parecia imune a todo aquele ajeitamento. Até porque ele já estava ajeitado. A plateia não. Tudo aquilo demorou algum tempo. Deram-lhe a oportunidade para falar. Não lhe deram a voz. Não lhe deram a palavra. Já tinha ambas. Assim, deram-lhe a oportunidade para falar. Algumas pessoas ainda se acotovelavam na plateia. O que é que nos faz humanos? perguntou para a plateia. As pessoas que ainda se ajeitavam deixaram de o fazer, de se acotovelar. Não voltou a repetir. Ficou em silêncio. O seu parecia ser tranquilo. O da plateia não. Parecia um silêncio inquietado, que se acotovelava a ele próprio. O próprio Carlos parou naquele momento e fez silêncio para beber um golo de água. A cadeira do António parecia ter aumentado a frequência. O António parecia estar ele próprio naquela plateia. Será a empatia? O sabermos acerca dos sentimentos dos outros? Será isso que nos faz humanos? E será isso que faz com que os autistas não sejam humanos? Eu sou humano!, interrompeu António visivelmente inquietado. Talvez devia haver mais do que um autista a falar de si próprio?, continua António. Tudo isto tem a ver com aquele assunto da poesia, referiu-lhe Clara. Um autista que fale de si próprio estará a falar do autismo. Não é o facto de haver mais e mais autistas a falarem do seu autismo que falaremos mais do autismo, continua Clara. Mas o autismo é composto de uma grande heterogeneidade, interrompe António. Certo, é verdade António. E as pessoas autistas que tu conheces, não são todas elas autistas ainda assim? E todas essas pessoas e tu próprio se estiverem a falar sobre vocês próprios não estarão a falar todos sobre autismo? Então não é preciso falar mais do que um, percebes?, retorquiu-lhe Clara. O autista continuou a falar. Falou durante muito tempo. A plateia também parecia ter muito para dizer. Parece não ter parado de falar enquanto o tempo passou. Há alguma coisa errada comigo, perguntou o autista? É alguma coisa que eu não faça que é errado? Ou alguma coisa que faça a mais? Ou que alguém não perceba? Carlos parou novamente para beber um golo de água. Sorveu o resto da garrafa, fechou-a e recostou-se na cadeira. Clara bateu palmas imediatamente. António ficou a olhar. O quê!?, perguntou. Acabou António, percebes?, diz-lhe Clara. O poema do Carlos acabou, certo Carlos?, perguntou novamente. Carlos já estava a olhar novamente para a página do livro de arte onde este tinha ficado aberto em cima da mesa. Aquele pelicano cinzento parece o autista que fala para a plateia, diz Carlos profundamente. Aquilo é um albatroz, retorquiu António. Não me refiro a essa António, refere-lhe Carlos. Mas sim aquele que já não está na imagem, percebes?, diz-lhe.
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