Nunca toquei piano, mas nunca precisei para poder sentir um deslumbre singular ao ouvir a sua melodia. E de tão complexa obra de arte sempre me perguntei sobre quem cuidava de o afinar. Até porque nunca vi nenhum músico a afinar o seu próprio piano, confesso. E ao longo destes meus quase cinquenta anos também nunca conheci algum, refiro-me obviamente a um afinador de pianos. Em criança cheguei mesmo a pensar que o piano de tão nobre instrumento que é nunca precisaria de ser afinado. Mas afinal quantos afinadores de piano existem? O Professor Arlindo Oliveira, Presidente do Instituto Superior Técnico, já fez esse trabalho outrora em jeito de estimativa, a partir do método de Fermi. Disse então "Em Lisboa, área metropolitana, vivem cerca de três milhões de pessoas. A uma média de duas pessoas por habitação, existem 1,5 milhões de habitações. Digamos que uma em cada 30 habitações tem um piano que é afinado regulamente, uma vez por ano. Nesse caso, existirão (cerca de) 50.000 pianos afinados, em cada ano, na Grande Lisboa. Um afinador de pianos que afine quatro pianos por dia e trabalhe 48 semanas por ano conseguirá afinar cerca de mil pianos por ano. Serão então necessários cerca de 50 afinadores de piano para afinar regularmente os pianos da Grande Lisboa" (in Jornal Público). De acordo com esta estimativa tão fiável podemos afirmar com segurança que existem 50 afinadores de piano. É um número que parece justificar o meu tão grande desconhecimento em relação a tão nobre profissão. Não vos vou continuar a dar "música", mas toda esta introdução serviu para pensar se o mesmo método poderia servir para calcular o número de casos de Mutismo selectivo e em particular em pessoas adultas? Tal como a raridade de afinadores de piano, o mesmo parece acontecer com o Mutismo selectivo, e nesta área especificamente conheço um fantástica "afinadora de pianos" no que diz respeito a casos de Mutismo selectivo - a Maria João Silva. E no caso de terem alguma questão a colocar devem-no fazer precisamente a ela. Eu apenas vos irei procurar trazer a vivência do acompanhamento de um caso de uma pessoa adulta com Perturbação do Espectro do Autismo, e que parece apresentar um conjunto de outras características que se enquadram numa situação de Mutismo selectivo. Esta é uma dificuldade pouco comum em que as pessoas exibem uma falha consistente ao falar em muitas situações em que a fala normalmente seria esperada. Não há nada de errado com sua língua ou cordas vocais, e também não apresentam um quadro de afasia. A condição de Mutismo selectivo descreve o facto de que, para muitos, a sua incapacidade de falar em algumas situações não parece ser uma escolha. Por exemplo, alguém com Mutismo seletivo pode falar perfeitamente normal quando está sozinho em casa com seus pais ou outros familiares próximos, mas encontra-se totalmente incapaz de falar em público, na escola ou no trabalho. Vários investigadores e clínicos na área têm procurado explicar o Mutismo selectivo, entre as quais, alguns sugeriram que é uma manifestação extrema de ansiedade social, enquanto outros apontam uma ligação mais forte com o autismo. Conheci o João (nome fictício) há alguns meses. Terminou a sua formação ao nível do Ensino Secundário e tem estado a ter dificuldades em começar a trabalhar. Não são essas as únicas dificuldades do João. Tem uma Perturbação do Espectro do Autismo e ao longo destes anos todos não foi diagnosticado e ou acompanhado naquilo que são as suas necessidades. Nestas e em outras situações semelhantes confesso-me perplexo sobre aquilo que poderá permitir que estas situações ocorram. Serão várias as razões e todas elas complexas certamente. Quando o vi pela primeira vez na sala de espera e o chamei apenas a família que o vinha a acompanhar se levantou. João ficou sentado. É como se já não estivesse habituado a que o chamassem ou lhe dirigissem a palavra. Não é uma situação rara de acontecer, principalmente quando sabemos que estamos perante uma pessoa autista. Ainda eu não sabia que não era apenas isso. A continuação da consulta deixava adivinhar um conjunto mais acentuado de dificuldades ao nível da comunicação. Para toda e qualquer tipo de pergunta João ficava sem conseguir responder. Os seus olhos pareciam fazê-lo em substituição. O movimentos dos olhos pareciam procurar as palavras que estariam ali algures. Fiz aquilo que me ocorre em algumas situações semelhantes - poder falar daquilo que poderão ser algumas das razões para que alguns daqueles comportamentos possam ocorrer. Não se trata de nenhum processo adivinhatório ou sequer de dizer que as pessoas no espectro do autismo têm todas o mesmo tipo de acontecimento. Mas há experiências na vida que apesar de as sentirmos como nossas, não deixam de acontecer num espaço comum e num contexto partilhado, e também por isso é esperado que haja algumas semelhanças nas experiências vividas. À medida que ia referindo algumas das razões que podiam deter o João de responder a algumas das minhas questões fez levantar o seu olhar. Ele continuava ali e continuava a comunicar. Dizia na altura que em alguns momentos o João podia sentir que não consegue encontrar as palavras certas ou adequadas para ele para poder responder à questão. Ou até mesmo sentir que a sua resposta pode não ir ao encontro da minha pergunta e isso levar a que fique detido num processo mais repetitivo de pensamentos que não lhe facilitem o processo comunicacional. Adicionalmente, vou validando aquilo que serão algumas questões do seu sentir. Nomeadamente, de que haverá certamente muitos outros momentos em que o João sente vontade de falar mas que é quase como se sentisse preso por uma qualquer vontade desconhecida e não o conseguisse fazer. Mas que certamente em todos esses momentos isso o faria sentir frustrado e triste consigo mesmo. João voltava a levantar a cabeça e olhar para mim. João parecia aquela pessoa sentada na audiência e que sentia conhecer de algum lado aquela melodia, mas que ainda assim ia trauteando para dentro a sua própria. As sessões são preenchidas pelo seu silêncio e o ruído das minhas inquietações. Uma e outra faz eco em nós. João continua a falar com os olhos. Quando fala parece outro. Penso que ele próprio se sente outro. Eu que estou com ele na sessão também penso sentir-me outro. Oiço cada palavra sua como uma escala ditada lentamente. Devolvo-lhe o meu sentir e de novo os seus olhos tomam conta da sua voz. A mesma voz que o parece vestir. É como se ela dissesse, “Não sou eu. Eu sei quem eu sou e não sou tímido, talvez isso torne tudo mais difícil. Quando estou com meus pais, posso ser eu mesmo, mas perto de todos é como se o mutismo seletivo assumisse o controlo. Eu consigo colocar as palavras na minha cabeça, mas algo não me deixa dizê-las e quanto mais eu tento, mais sinto como se fosse um fracasso quando não pudesse.". João volta a levantar o olhar. A frase é dita por mim. É o que sinto. Mas também sinto que quanto mais digo menos espaço parece existir para a sua voz. E por isso também faço silencio. Este silêncio que é feito de tudo menos de ausência. Está lá tudo. E enquanto esse silêncio se instala apenas interrompido pela estática de uma ligação por internet com menos qualidade, os pensamento sobressaem. “Quando eu estava no Ensino Secundário, até porque ninguém esperava que eu dissesse nada, passou a ser impossível dizer qualquer coisa, e as outras crianças simplesmente me evitavam. Até os professores me tratavam de forma diferente. Na aula de História, o professor simplesmente passava por mim quando tínhamos que ler as coisas. Por um lado ajudou, eu não seria capaz de falar de qualquer das maneiras.”. Os investigadores nesta área vão-nos mostrando que exemplos como este mostram como o mutismo seletivo é mantido não apenas pelo comportamento da pessoa com mutismo, mas também pelas expectativas e comportamentos dos outros. Não é de surpreender que isso leve a sentimentos extremos de isolamento para pessoas com mutismo. E eu acrescentaria que esses sentimentos ainda são mais marcados quando a pessoa apresenta uma Perturbação do Espectro do Autismo.
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