"Jovem que sofria de autismo encontrado morto num poço. Mãe é a principal suspeita", lê-se num site de noticias. As reacções não se fizeram esperar. Os comentários nas redes sociais, nos sites que a noticiou e nas conversas das pessoas foram muitos e diversos. "Uma mãe que faz uma coisa desta não merece ser mãe!", "Merecia destino igual.", ou "É compreensível que uma mãe de um autista possa ser levada a fazer isto porque ninguém compreende o que uma mãe sofre nestas situações!". O desejo de todos nós, uns mais do que outros, em repararmos ou levarmos justiça a esta situação veio ao de cima, envolto numa angustia capaz de desorganizar alguma da nossa coerência e racionalidade. A recente noticia de um jovem autista que alegadamente terá sido morto pela sua mãe reacendeu várias questões, todas elas envoltas num enorme angustia e perplexidade. Este caso parece descrever aquilo que se designa de filicídio materno, o assassínio do próprio filho.
"- O que é que leva uma mãe a fazer uma coisa destas?", provavelmente a pergunta mais frequentemente feita em situações destas. E a resposta é além de complexa, difícil de a fornecer.
Algumas pessoas poderão apressar-se e dizer que isto são questões contemporâneas e derivadas de todas as alterações que se tem assistido ultimamente na Sociedade e na perda de valores fundamentais, nomeadamente na família. Mas não é verdade, o filicídio é algo que vem desde os primórdios da história, retratado na Mitologia Grega, passando pelo
império romano, por antigas civilizações, e até cometido para controlo de natalidade em países como a China. É um fenómeno transversal nas gerações, cometido por várias razões, e que ainda na actualidade é uma realidade na sociedade Portuguesa, para além do aparente exemplo deste caso recentemente noticiado.
O livro de Eurípedes, narra a história de Medeia, filha de Eetes, que tirou a vida aos seus dois filhos, para que, assim se vingasse do seu marido Jasão, que a havia traído com outra mulher. No Império Romano servia como forma de controlo da fome entre a população, em que se reduzia o número de pessoas necessitadas. Ou caso existisse alguma espécie de malformação ou rejeição a criança era votada ao abandono e entregue à morte por falta de cuidados. Na civilização Cartaginense, era prática recorrente o sacrifício de crianças, sendo certo que as famílias mais abastadas tinham a obrigação de oferecer os seus filhos primogénitos como instrumento de reconstrução da aliança com os Deuses. E a situação ocorrida até recentemente na China enquanto controlo de natalidade, ainda que rejeitado pelo próprio pais como sendo real. O certo é que independentemente da descrição difícil destas situações é importante enquadrar estes fenómenos ao longo da história da humanidade.
Em 1969, Resnick, propôs um modelo de classificação para os casos de filicídio. Foram criadas várias categorias, nomeadamente, filicídio altruísta, por psicose aguda, de filho não desejado, acidente e pro vingança conjugal. Ou seja, estas eram as várias situações propostas pelo autor para enquadrar legalmente este comportamento. E qualquer pessoa pode nesta altura dizer - "- Mas ainda se vão dar ao trabalho de enquadrar este comportamento horrendo?". E a resposta é e deve ser, sim. E outros modelos foram sucedendo a este com a retirada e a introdução de outras propostas consoante a avaliação dos casos reais que os próprios iam estudando. E mais recentemente, em 1990 Bourget e Bradford, no âmbito do seu trabalho propuseram as seguintes categorias: 1. filicídio patológico; 2. acidental; 3. por retaliação; 4. neonatícidio; 5. paterno. Mais uma vez, são outras as categorias, mas continua a haver a necessidade de importância de enquadrar este tipo de acontecimentos.
Esta questão é fundamental para este caso ocorrido recentemente em Portugal porque é preciso poder compreender que a possibilidade da mãe deste jovem autista poder ter ela própria uma perturbação psiquiátrica é grande. Seja porque há uma probabilidade disso existir até o facto do seu filho ser autista leva a pressupor que por factores genéticos nesta mãe possa existir com maior probabilidade uma perturbação psiquiátrica ou pelo menos uma predisposição para o desenvolvimento de uma perturbação. Mas também porque o facto de se viver com uma pessoa autista leva à possibilidade de haver um conjunto de situações que possa tornar a pessoa mais vulnerável para o desenvolvimento desta mesma perturbação. E aqui estaremos a procurar sair do discurso de culpabilização para podermos ser compreensivos, ainda que continue a ser uma situação frágil e angustiante.
Em muitos comentários a esta noticia foi possível ler pessoas a referirem que a culpa é do comportamento do filho autista. E que as pessoas autistas têm comportamentos bizarros capaz de levar alguém à loucura. Ou outros comentários referindo que esta mãe estaria indefesa e que não poderia ter acontecido outra coisa senão esta tragédia. Atendendo a que não tenho conhecimento algum do caso a não aquele que me é dado a conhecer da comunicação social como a qualquer um de vós, não vou fazer nenhum tipo de futurologia. É fundamental poder ter em conta determinadas vulnerabilidade individual na mãe, seja psicopatológica ou de natureza psicossocial, assim como a existência de factores de risco e protectores.
E neste caso específico é fundamental enquadrar a situação do filho, um jovem autista. Volto a referir que desconheço o caso, mas é possivel pensar que há enquadramentos em casos de filhos autistas, independentemente da idade, que leva a considerar múltiplas situações desafiantes ocorridas no seio da família. Seja as situações de desregulação comportamental em que as pessoas autistas vão ficar durante um determinado período mais descontroladas e agitadas a nível psicomotor, levando à possibilidade de ocorrência de confrontos físicos, principalmente porque os pais estão a procurar fazer uma contenção física. Mas também a outros comportamentos que não sendo tão imediatamente desafiadores, a sua repetição ao longo do dia e dos dias leva a uma quebra na capacidade da família poder dar uma resposta. E em casos em que existe apenas um progenitor, a situação torna-se ainda mais complexa. Apesar de poderem ser identificados diversos factores de risco para a ocorrência de determinadas situações, tais como este exemplo noticiado. Não é correcto poder dizer que estas situações tendem a acontecer com mais frequência em situações em que o filho é autista.
Estes acontecimentos são por si só susceptíveis de interpretações diversas e opiniões mais apressadas. Quando porventura o mais importante será poder conhecer estas situações e poder preveni-las. Poderão dizer que esta mãe sempre foi extremosa e cuidadosa com o filho e que nunca lhe deixou faltar nada. E que o filho com uma Perturbação do Espectro do Autismo, apresentava um nível marcado de dificuldades e necessidades de apoio. Ou que todos os pais com filhos com autismo têm momentos como estes. Este discurso e a sua análise pode mostrar-nos uma certa normalização destes acontecimentos. E principalmente não criar oportunidade para a mudanças desta e de situações semelhantes.
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