Nunca fui muito bom a contar histórias, refere Júlio (nome fictício). Também nunca fui grande coisa a ouvir histórias, continua. Talvez por isso seja assim quando tento contar a minha própria história!, refere.
Sempre tive a sensação de ter vivido coisas diferentes dos outros, diz Ana (nome fictício). Cada vez que me pediam para dizer o que se tinha passado diziam que era mentirosa ou que não tinha sido assim que as coisas tinham acontece, menciona.
Já li sobre o autismo e percebi que a memória autobiográfica em nós está algo comprometida, diz Rafael (nome fictício). Mas ainda assim é possível contar a minha história, diz. Sabes como eu sei? pergunta-me retoricamente. Porque a quero contar, conclui.
Quando recebo uma pessoa adulta na consulta olho-a, escuto-a e procuro sentir e pensar a sua história. Muitas vezes ela traz uma emergência. Por vezes muitas emergências. E muitas delas estão intrínseca e intricadamente ligados à sua história. Ou pelo menos a parte dela. Ou também à forma como a mesma parte da história vai sendo recontada, repetida por si mas também pelos outros.
Penso nestes momentos naquilo que são certas partes da nossa história de vida e de como sentimos não as recordar. Mas que aqueles que vivem connosco procuram recontar e nos levam a preencher esse mesmo espaço da nossa história. Por isso, a nossa história nunca é verdadeiramente só nossa. E como tal, quando recebo uma pessoa adulta na consulta, procuro também escutar a forma como o Outro a foi contando e recontando.
A terapia narrativa é um estilo de terapia que ajuda as pessoas a se tornarem elas próprias. E abraçar o ser, tornarem-se um especialista das suas próprias vidas. Na terapia narrativa, há uma ênfase nas histórias que a pessoa desenvolve e transporta consigo ao longo da sua vida.
E tal como nos dois testemunhos do Júlio e da Ana ficou patente, a forma como cada um conta a história é diferente. À medida que a pessoa experimenta eventos e interações, dá sentido a essas experiências e elas, por sua vez, influenciam a forma como nos vemos a nós próprios e ao mundo. E como tal podemos carregar várias histórias ao mesmo tempo, como aquelas relacionadas com a nossa autoestima, competências, relacionamentos, trabalho, etc.
Já vos disse que não sou preguiçoso, gritou Samuel (nome fictício) na consulta dirigindo-se aos pais. Vocês estão sempre a dizer que eu não tomo atenção, mas eu oiço perfeitamente as coisas horríveis que dizem de mim, diz Anabela (nome fictício) na consulta com a mãe. Achas que eu não sei o que as pessoas acham de mim? pergunta Osvaldo (nome fictício) referindo-se ao que tem lido nas redes sociais. Eu sei perfeitamente que me acham um monstro, um ser estranho, conclui.
Uma vez ouvi ainda em pequeno na escola básica a minha professora dizer - Uma mentira depois de repetida muitas vezes passa a ser uma verdade. Não me consigo recordar em que situação ela o disse. Porventura, foi numa situação em que algum de nós estava a explicar por que não tinha feito o trabalho de casa.
E não deixa de ser curioso que muitas das pessoas que acompanho referem que em muitas vezes fazem coisas que não fariam em outras condições com o objectivo de se sentirem integrados. Estamos a falar de camuflagem social é verdade. Mas também estamos a falar de ser algo que não se é. Algo próximo de uma mentira, visto que não o são assim. E que em muitos deles os leva a questionar sobre quem eles próprios são.
E depois das pessoas terem conhecido o meu diagnóstico não pararam de o repetir, diz Alberto (nome fictício). Isto é por causa do autismo, aquilo é devido ao autismo, refere. Há vezes que desejava não lhes ter dito nada, continua. Passaram-me a perguntar coisas por causa do autismo ao invés de me perguntarem a mim, percebes?, pergunta-me. Lá em casa dizem que já estão cansados de eu falar sobre o autismo, diz Joana (nome fictício). Na verdade o que eles dizem é que eu agora estou sempre a justificar tudo com o autismo, diz. Gostava de lhes poder dizer que durante vinte e dois anos fui algo e alguém que não me fazia sentido. E o facto de agora ter sabido me compreender quero poder dize-lo, compreendes? pergunta-me. É como se eu nunca tivesse sabido o meu verdadeiro nome até então e agora o tivessem revelado, conclui.
Gostava que vocês me deixassem fazer as coisas, grita José (nome fictício) em direcção aos pais. Eu não sou uma criança, continua. Eu tenho trinta e seis anos. Eu quero poder errar, percebem? diz chorando. Eu quero poder errar, eu quero poder errar, apenas isso! repete.
Eu sei que sou culpado disto tudo, diz Manuel (nome fictício). Eu sou uma merda. Os meus pais e a minha família tem sofrido tudo isto por causa de mim, continua. Não sei fazer nada bem. Não sei fazer como as coisas como os meus irmãos, diz. Tu só olhas para os meus defeitos, diz Carlos (nome fictício) na sessão dirigindo-se à sua esposa. Só vês as minhas dificuldades, tal como todos os outros na minha vida, continua. Não consegues ver as minhas capacidades?, pergunta-lhe. Por vezes não te censuro, diz desalentado baixando a cabeça. Por vezes até eu não consigo ver as minhas competências, diz baixinho.
Ao longo da sua vida as pessoas autistas vão vivendo todo um conjunto variado e penoso de experiências traumáticas. Sejam as situações de incompreensão acerca dos comportamentos dos outros e destes em relação aos seus próprios comportamentos. As experiências difíceis causadas pela imersão em situações sociais e sensoriais extremas. As experiências de bullying durante um período alargado na escola e depois no trabalho. Os abusos, sejam os físicos, sexuais e psicológicos. Os enganos e mentiras devido a terem acreditado piamente em tudo aquilo que grande parte das pessoas lhes foi dizendo. Estas e outras situações constituem-se como vivências traumáticas, inscritas ou não numa condição de stress pós-traumático. Mas como experiências traumáticas em si, a recordação e a narrativa em torno delas ao longo do tempo vai ficando enviesada, confusa. E como tal, é importante ajudar a que a pessoa possa recontar estas suas vivências, desconstruir algumas das crenças negativas em torno de determinadas questões. Assim como levar-se a não culpabilizar e dar demasiado enfase a uma narrativa auto-critica.
A pessoa não é o problema; o problema é o problema. Esta frase de Epston em 1993 deixa transparecer a importância do foco da narrativa para o problema ao invés da pessoa. Não se pretende desresponsabilizar a pessoa do processo. Muito pelo contrário. Ao ser possível a pessoa envolver-se na construção da sua narrativa é ela própria um agente activo no processo de mudança e de (re)construção do Self.
É compreensível que o diagnóstico de autismo possa ser sentido como avassalador por todos, sejam os pais, mas também e principalmente os próprios. Contudo, é importante além da própria conceptualização do quadro e do perfil de funcionamento da pessoa, recentrar a intervenção não apenas num atender daquilo que é apontado como problemas. Até porque ao fazermos isso, nomeadamente enquanto terapeutas, estaremos a validar a identidade da pessoa como sendo um "problema". Não nos desviamos daquilo que são as necessidades, seja dos pais, escola, colegas, mas principalmente dos próprios. Caso contrário, corremos novamente o risco de devolver à pessoa que o problema é ela e que é ela que necessita de mudar e que os outros são vitimas das suas características. Certamente, que os pais, escolas, colegas e outros não deverão ser deixados desamparados. Principalmente no caso dos pais e das escolas é fundamental que possa haver um trabalho especifico, dirigido a estes e realizado em conjunto. Contudo, devemos voltar a centrar a intervenção na pessoa.
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