Vocês não acreditam no que ouvi! dizia Carlos (nome fictício), incrédulo do alto dos seus 78 anos. Então? perguntavam-lhe os colegas da residência. Este fim de semana fui a casa da minha filha e um dos meus netos perguntou à mãe para onde eu ia quando morresse!, refere. Para o céu! disse a minha filha. Vocês acreditam numa coisa destas? perguntou de forma retórica. Ficaram os quatro na risota uns bons quatro minutos.
Cada vez mais repetimos que o autismo é uma condição que ocorre ao longo da vida da pessoa. Contudo, continuamos sem saber muito do que acontece para lá dos vinte anos da pessoa autista.
Carlos, tem setenta e oito anos. E apesar do psicólogo na residência ter falado com ele sobre algumas das suas características e de como elas por vezes lhe traziam dificuldades, o Carlos pareceu pouco envolvido e interessado na conversa. O psicólogo entendeu que a situação poderia ter a ver com a idade e com a perda de algumas competências a nível cognitivo. Ainda assim, referenciou o Carlos para a consulta de Psiquiatria Geriátrica que o encaminhou para um despiste a nível psicológico. Já lá vão seis anos desta situação e que a avaliação determinou que o Carlos apresentava todo um conjunto de características que pareciam estar dentro de um perfil de funcionamento do Espectro do Autismo. Não haviam informadores ou familiares vivos ou disponíveis para informar acerca de algumas das etapas de vida do Carlos. Até porque a sua convivência com a família foi tudo menos serena. Mas o própria Carlos, apesar de mostrar algumas dificuldades em recuperar determinada informação mais do presente momento, tinha uma capacidade de recordar muitos dos eventos principais da sua vida. E além disso, sempre fez e manteve até hoje um registo exímio em relação a todos esses momentos.
O Carlos disse na forma mais respeitosa que conseguiu ao psicólogo que o avaliou e diagnosticou com Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1), que se ninguém se tinha interessado por ele ao longo daqueles 72 anos, não lhe fazia sentido neste momento ele seguir as orientações de quem quer que fosse. Até porque diz que ainda assim sozinho conseguiu chegar até ali, mesmo que com muito custo a vários níveis. Carlos referia-se principalmente ao nível do sofrimento psicológico e das dificuldades em ultrapassar determinado conjunto de barreias. Na última conversa que teve com esse mesmo psicólogo deixou uma pergunta no ar e que é de todo pertinente. O que é que as entidades e profissionais de Saúde estão à espera para tentar compreender o que se passa com as pessoas autistas adultas? E ainda mais as idosas?
A pergunta mais geral do Carlos, multiplica-se num conjunto de outras tantas perguntas, mas reflecte em muito as necessidades da população autista, principalmente na etapa mais longa da sua vida - ser adulto. Começam esta etapa a partir do intervalo de idade entre os 18 - 24 anos. E se atendermos à esperança média de vida em Portugal irão até cerca do 80 anos de vida. Sendo que no caso das pessoas autistas há que ter em conta todo um conjunto de comorbilidades psiquiátricas e da saúde física e que compromete esta questão da esperança média de vida e que leva a pensar numa maior mortalidade precoce neste grupo. Ainda assim, a questão mantem-se e faz todo o sentido.
Se a avaliação de despiste de autismo na pessoa adulta entre os vinte e os quarenta anos é complexa. Ainda assim, temos todo um conjunto de possibilidades de recolha de informação clinica e do desenvolvimento junto de alguns familiares e informadores. Já para não falar da reserva cognitiva que as pessoas nesta faixa etária ainda mantem. A partir dos quarenta e cinco anos de idade é sabido que começa a haver um declínio cognitivo ligeiro e que faz parte do próprio desenvolvimento. Quanto mais tarde conseguirmos chegar até às pessoas, mais dificuldades teremos em fazer um diagnóstico com validade. Para além de todas as dificuldades que haverão para se conseguir obter determinados ganhos terapêuticos. Ainda que haja muitos ganhos a ter. Mas também para isso será importante que a própria conceptualização do que é isto do autismo e ainda mais nestas faixas etárias acima dos 50 anos de idade. E de em conjunto com a pessoa podermos perceber aquilo que fará mais sentido para a pessoa procurar compreender em relação ao seu passado e presente e no que gostaria de fazer.
Carlos acabou por partilhar a história que ouviu em casa da sua filha relativamente ao lugar para onde as pessoas vão quando morrem, e acabou por acrescentar. Para onde pensam que as pessoas autistas vão depois de passarem a ser adultas?
Comments