Se havia coisa que me fazia querer chegar rapidamente aos 18 anos era a possibilidade de tirar a carta de condução. E ao fim destes anos todos as coisas não mudaram assim tanto. Ainda me recordo quando o meu pai me deu as primeiras lições. Apesar de na altura não ter achado assim tanta piada tendo em conta todo o stress e responsabilidade acumulados. Isso também não mudou assim tanto nos dias de hoje. Apesar de haver muita vontade em tirar a carta, os jovens mas também os pais sentem que é uma responsabilidade acrescida. E querem garantir que há condições para que isso aconteça. E principalmente esse questionamento ocorre nos jovens com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). Afinal podem ou não tirar a carta? Têm ou não competências para o fazer? E se sim, como é que se pode ajudar a preparar para esse momento tão importante mas igualmente stressante?
Lê-se no site do Estado eportugal.gov.pt - "Para conduzir um veículo na via pública, é preciso estar legalmente habilitada/o, ou seja, ter carta de condução.Pode-se tirar a carta de condução de automóvel a partir dos 18 anos.". Até aqui tudo bem. E de seguida a seguinte nota "Em regra, qualquer pessoa com mais de 18 anos, que não tenha impedimentos físicos ou mentais, pode tirar a carta".
A partir deste ponto, os pais e depois alguns dos jovens ficam mais apreensivos. As preocupações de alguns pais que já se vinham a manifestar desde há algum tempo antes materializam-se naquele momento. Muitos pais já tinham sido advertidos por alguns dos profissionais de saúde que tinham consulado ou que acompanham o seu filho de que seria possível que ele não viesse a poder alcançar alguns objectivos ou etapas. Como por exemplo, ser suficientemente autónomo ou tirar a carta de condução. Mas os próprios pais também se vão apercebendo de algumas das dificuldades que os seus filhos vão tendo ao longo do tempo. Nomeadamente, na Escola para poder efectuar algumas aprendizagens. Mas também em casa quando lhes é solicitado que realizem algumas tarefas. Mas não só. Ainda que de uma forma mais subtil, alguns pais notam que parece haver um sentido do que eles chamam frequentemente de "desresponsabilização" o que também os deixa preocupados. Principalmente quando se pensa nesta questão de vir a tirar a carta de condução e conduzir na via pública.
Mas esta questão não é assim tão simples quanto isso. Até porque apesar de alguns pais poderem estar mais conscientes de algumas das limitações ficam aparentemente mais conscientes quando estas se materializam em algo que ocorre na transição para a vida adulta. O que lhes faz recordar que algumas destas limitações vão continuar a ocorrer ao longo do ciclo de vida. Mas alguns outros pais que ainda não estão tão conscientes ou que estando procuram que os filhos não tenham consciência do mesmo para que eles não fiquem traumatizados, acabam por ficar sem saber o que fazer nestes momentos. E os filhos, mesmo aqueles que têm algum nível de consciência face às suas competências ainda assim sentem que tirar a carta de condução é um direito e querem-no exercer.
Quando chega a esta altura perto dos 18 anos há um pedido formalizado para tirar a carta de condução e o jovem realiza uma consulta com o médico e/ou psicólogo que já o vem a acompanhar ao longo do tempo. E nesta altura é frequente ser solicitado uma avaliação psicológica. E quando a pessoa já é acompanhada, nomeadamente por um psicólogo, estranha-se o pedido de uma avaliação psicológica - "Mas porquê, se ele já é acompanhado por si há não sei quantos anos?". Este pedido de avaliação psicológica está prevista na Lei e é necessária quando se prevê a hipótese de poder haver algumas características que possam impedir o tirar a carta de condução ou então que possam ter mais ou menos impacto no comportamento de conduzir na via pública. E lê-se no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir a necessidade de ter realizado esta avaliação em determinadas condições (ver diploma legal Decreto-Lei nº 40/2016 aqui).
Mas se a situação estava confusa até então parece que ainda ficou mais. Mas afinal pode ou não tirar a carta de condução?! Será importante que no caso de o jovem já ser acompanhado em consulta médica ou psicológica poder ser colocada a questão directamente ao profissional de saúde e solicitar aconselhamento.
Em alguns momentos da minha prática profissional esta situação já tem acontecido algumas dezenas de vezes. E se por vezes a situação parece mais fácil de ajuizar tecnicamente, outras vezes nem por isso. Mas uma coisa consigo dizer com maior certeza - Não é o facto da pessoa ter um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo que a impede de tirar a carta de condução! E esta vez tem-se colocado cada vez mais frequentemente. Porquê? Porque há cada vez mais pessoas a serem diagnosticadas e que antes não o eram. E normalmente estas pessoas apresentam um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, nível 1, o que se traduz de uma maneira geral, num conjunto maior de competências e de funcionalidade. O que importa para o comportamento de condução. Até porque as áreas avaliadas a nível psicológico nestas situações são as áreas - perceptivo-cognitivo e psicomotora e psicossocial. Ou seja, o comportamento de conduzir inclui um conjunto de competências a nível do funcionamento global da pessoa. Não é apenas dar à chave e conduzir, como costuma ser dito na gíria.
A capacidade do próprio poder descodificar toda uma linguagem gráfica e pictográfica (entenda-se sinais de transito e outras indicações) e ter uma tomada de decisão com base no código da estrada é uma tarefa complexa. Para além disso, há a necessidade de conjugar um conjunto de áreas do nosso corpo. Por exemplo, manter a atenção visual na estrada e ao mesmo tempo coordenar os membros superiores a segurar o volante enquanto os membros inferiores vão manipulando os pedais e ao mesmo tempo a mão direita (normalmente) conjuga a colocação da mudança adequada. Esta tarefa por exemplo, é sentida como bastante difícil por todo o candidato a condutor no inicio de tirar a carta de condução e depois esta dificuldade vai diminuindo e desaparece ao fim de poucas aulas práticas. Mas muitas vezes os candidatos com Perturbação do Espectro do Autismo referem esta como de uma grande dificuldade. E muitas vezes essa capacidade de ultrapassar a situação não lhes é possível porque se prende com a forma como o seu cérebro processo e conjuga a informação. E por mais que o próprio possa ter estratégias adaptavas para outras situações neste caso não lhe é possível. e a culpa não é sua, ainda que fique bastante frustrado quando tal acontece.
As situações que são colocadas diariamente ao condutor são várias, desde aquelas a nível motor e da sua capacidade de destreza manual. Mas também outras que se prendem com questões psicossociais e de como utilizar determinada informação no meio envolvente e usa-la para tomar uma decisão no comportamento de condução. Por exemplo, há várias situações que ocorrem no trânsito e que são da ordem do comportamento e atitude. Aquilo que muitos chama de civismo (ou falta dele). E isso importa na tomada de decisão. Por exemplo, é conhecido que algumas pessoas com PEA têm dificuldade em retirar informação do contexto envolvente ou então de interpretar adequadamente essa mesma informação. E como tal a sua decisão fica ou pode ficar ameaçada por esse conjunto de pensamentos e como tal comprometer a situação. Mas volto a referir é importante que a situação do candidato possa ser avaliada adequadamente para que se possa tomar uma decisão justa. Posso inclusive dizer que tenho uns quantos clientes que acompanho e que têm um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e que têm carta de condução e conduzem numa base diária.
É fundamental que a situação seja avaliada de forma capaz. Apesar das pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) poderem ter algumas características que diminuam a sua interacção social. A carta de condução é vista por muitos como algo a obter. Seja porque sentem que vai aumentar a sua autonomia e independência. Mas também porque sentem que é um marco importante da transição para a vida adulta e que não o querem falhar.
Na avaliação que é realizada, se na área perceptivo-cognitivo e psicomotora os resultados obtidos devem ter que estar num determinado percentual para serem considerados aptos ou não. Na área psicossocial a legislação diz:
"Condições mínimas de aptidão, para candidatos a condutor e condutores do Grupo 1 e do Grupo 2:
a) Não apresentar perturbação grave da personalidade ou manifestações psicopatológicas; b) Não apresentar instabilidade emocional manifesta; c) Não apresentar manifesta evidência de agressividade, impulsividade ou irritabilidade explosiva; d) Não apresentar comportamento antissocial evidente e manifesto; e) Não apresentar, manifestamente, comportamentos que traduzam atitudes inadaptadas e/ou de risco face à segurança do tráfego; f) Não apresentar, manifestamente, comportamentos que revelem a tendência para abusar de bebidas alcoólicas ou evidenciem dificuldade em dissociar o seu consumo da condução automóvel; g) Não apresentar, manifestamente, comportamentos que revelem a tendência para abusar de substâncias psicotrópicas ou evidenciem dificuldade em dissociar o seu consumo da condução automóvel."
Se na área perceptivo-cogntivo e psicomotora é fundamental uma avaliação para aferir o resultado numérico. Ainda que numa situação por exemplo de existência de um Deficit Cognitivo possamos ter a noção de que há certamente resultados abaixo nesta área e como tal o candidato será considerado inapto. Na área psicossocial alguns dos ponto que são evidenciados são mais capazes de serem avaliados no próprio acompanhamento clínico que é realizado com a pessoa.
A condução automóvel é um comportamento complexo e de enorme responsabilidade. E que deve ser avaliado a competência do candidato de uma forma adequada. No entanto, é fundamental não cairmos em generalizações de que determinados grupos de pessoas não podem tirar a carta de condução porque apresentam este ou aquele diagnóstico. Peça ajuda a um profissional de saúde.
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