Misofonia: Desliguem o Mundo, por favor!
- pedrorodrigues
- há 2 dias
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Antes de começarmos a falar peço que não respires fundo! disse Alberto (nome fictício). Aquele relógio em cima da mesa não produz aquele som de tic-tac? Porque se o fizer peço que o possas tirar da sala, acrescenta. Alberto mostrava-se visivelmente perturbado e constrangido. A sua tonalidade de voz era mais alta, mas provavelmente devia-se ao facto de usar uns fones de cancelamento activo de ruido. Apesar de ter dado indicação ao Alberto para se sentar, ele procurava de forma intensa coisas dentro da sala, olhando para vários sítios.
Ao fim de vinte e cinco anos de clinica não deixo de me surpreender com o comportamento humano e a sua heterogeneidade. Mas o facto de nos últimos anos trabalhar com pessoas autistas tem sido um excelente treino para este e outro tipo de acontecimentos. E como tal, encarei o pedido do Alberto como algo muito possivelmente enquadrado dentro da misofonia. E que por conseguinte me levou a ficar com a ideia de o Alberto poder apresentar um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, tendo em conta a prevalência da misofonia neste diagnóstico. Isto porque o pedido do Alberto tinha precisamente a ver com a necessidade de fazer uma avaliação de diagnóstico.
Peço desculpa por este pedido, mas peço que compreendas que já estive em inúmeras outras consultas de psicologia e que ao fim de muito pouco tempo acabei por as abandonar. Sendo que em algumas situações acabei por agredir alguns dos teus colegas, disse. E já aconteceu o mesmo em outras situações lá em casa, e antes na escola, continua. É um pesadelo, compreendes? pergunta. Escutava Alberto enquanto tentava que a minha respiração não fosse de forma alguma profunda. Perguntei-lhe como se sentia em relação ao que me dizia e descrevia.
Sim, penso que me sinto agredido, responde. Ainda que agredido é uma palavra suave e que banaliza muitas outras experiências na minha vida. Mas sinto-me agredido, como se estivesse a entrar num sitio onde não sou autorizado e um alarme disparasse dentro de mim. E parece que esse mesmo sitio proibido parece estar em qualquer sitio por onde eu esteja sem que eu saiba antecipadamente. Não há sinal nenhum a avisar, tal como na estrada quando vemos um sinal de proibição de ruido e sabemos que nos podemos estar a aproximar de um hospital, continua. Mas no meu caso é sempre inesperado, acrescenta.
O Alberto vive há 24 anos num Mundo que desde muito cedo se tornou uma ameaça intensa e constante para si. Nem sequer precisava de sair de casa ou do seu quarto para que esta ameaça estivesse presente.
Em criança andava sempre com as mãos nos ouvidos, diz. E as pessoas insistiam em retirar-me as mãos das orelhas, diziam que era falta de educação não ouvir o que as pessoas tinham para dizer, continua. Mas eu já sabia que mais cedo ou mais tarde havia de haver alguma coisa que me iria causar aquela dor intensa e que logo a seguir perdia completamente a cabeça, refere. Diziam que era uma mania minha e que não queria era ir para a escola e por isso ficava na sala de aula com as mãos nas orelhas. Os meus braços ao fim do dia doíam-me por andar o dia todo com as mãos nas orelhas, mas preferia isso a ter de suportar os sons! diz.
A misofonia é uma condição mal compreendida em que se sente uma angústia intensa em resposta a estímulos maioritariamente orofaciais. A misofonia é uma perturbação caracterizada por uma resposta emocional negativa excessiva ou tolerância diminuída a sons humanos orofaciais relacionados com a respiração e à alimentação. No entanto, está a crescer o consenso de que os estímulos desencadeantes podem envolver outros sons (e.g., escrever à máquina, bater uma bola, andar de saltos altos, etc.) e modalidades (visuais, cinestésicas). As principais reacções emocionais aos estímulos desencadeadores parecem consistir em raiva e repugnância - moral ou visceral - em vez de ansiedade. A misofonia afecta entre 12,8 e 35,5 % das pessoas autistas. Sendo que 79% das pessoas autistas com misofonia apresentam comorbilidades psiquiátricas como Perturbação Obsessivo-Compulsiva e ansiedade. A investigação tem demonstrado que as predisposições genéticas e a saúde mental materna influenciam o desenvolvimento da misofonia. Esta é uma condição neurofisiológica complexa com um foco auditivo que é distinto dos problemas de sensibilidade sensorial relacionados e causa consequências negativas significativas para uma proporção surpreendentemente grande da população em geral.
A literatura actual sugere que o início da misofonia situa-se tipicamente, mas não exclusivamente, na infância ou adolescência. A natureza complexa da misofonia é cada vez mais reconhecida e evidente pelos seus aparentes fundamentos emocionais, tais como a raiva, ansiedade e repugnância, a sua natureza transdiagnóstica e comorbidade com condições como humor, ansiedade e perturbações obsessivo-compulsivas, bem como a diversidade dos seus factores desencadeantes. Dada esta complexidade, foi reconhecido que o campo e especialmente o tratamento da misofonia poderia beneficiar de uma compreensão mais profunda da natureza e da origem da condição.
Uma questão interessante, mas ainda em aberto, a este respeito é a seguinte, a raiva e o nojo, e não o medo ou outras emoções, parecem constituir as principais reacções emocionais a estímulos misofónicos. Uma vez que as propriedades físicas do som (e.g., volume, altura, timbre) parecem não estar relacionadas com os estímulos misofónicos, parecem não estar relacionadas com a intensidade ou a natureza das reacções emocionais, foi colocada a hipótese de que os significados específicos dos estímulos desencadeadores estão inerentemente relacionados com a reação emocional que pode incluir mudanças na experiência consciente, comportamento, e/ou processos (neuro)fisiológicos.
Existem inúmeros questionários disponíveis para avaliar a misofonia, o que reflecte uma compreensão crescente desta condição, ainda que não exista nenhum destes questionários aferidos para a população portuguesa. As medidas incluem o Questionário de Misofonia e a Escala de Misofonia de Amsterdão, amplamente usados na investigação dentro desta área. Mais recentemente, foram desenvolvidas mais escalas psicometricamente validadas, como a Escala de Síndrome de Sensibilidade Sonora Selectiva, o Duke Misophonia Questionnaire, o Duke Vanderbilt Misophonia Screening Questionnaire, Berlin Misophonia Questionnaire Revised, Sussex Misophonia Scale e o Misophonia Impact Questionnaire.
Para além dos instrumentos usados para avaliar as características presentes numa situação de misofonia, para além do seu impacto em termos da qualidade de vida e funcionalidade. É importante ressaltar que a avaliação acerca da informação clinica partilhada pela própria pessoa mostra-nos com relativa facilidade que a presença de determinado estímulo ou conjunto de estímulos no ambiente da pessoa e que causam um grande impacto em termos de desagradabilidade e posteriormente de uma reacção negativa e aversiva intensa ao mesmo e que ocorre ao longo do desenvolvimento parece ser suficiente. Sublinhando que para além da misofonia, devemos esperar todo um conjunto de outros aspectos em termos de psicopatologia, nomeadamente ansiedade, mas também depressão. Não só porque a pessoa passa a estar constantemente em hipervigilância para procurar detectar o mais rápido e antecipadamente os estímulos receados. Mas também do ponto de visto do humor, atendendo ao impacto que esta condição tem na vida da pessoa. Para além de outros diagnósticos possíveis, tais como a PEA ou a POC.
Para além da avaliação é fundamental pensar nas possibilidades de intervenção. E apesar de não existir um número significativo de ensaios clínicos para validar as intervenções com melhor eficácia, o modelo Comportamental e Cognitivo parece continuar a ser aquele que oferece melhor resposta à situação da misofonia.
Em primeiro lugar, iremos precisar de devolver à pessoa com misofonia e às pessoas significativas (i.e., família, etc.) com que a pessoa vive e convive, o que é que se trata a misofonia. Continuamos a verificar que muitas pessoas continuam até ao inicio da vida adulta sem ter um diagnóstico adequado relativamente à sua situação clinica e que os ajude a melhor compreender e a lidar com a sua condição. Há todo um conjunto de crenças que necessitam de ser desconstruidos, nomeadamente de que a pessoa faz aquilo para manipular as pessoas e o ambiente envolvente. E de que a pessoa consegue ouvir perfeitamente outros sons, alguns deles até bem altos e que por isso também pode aprender a lidar perfeitamente com estes outros. Até porque muitos destes estímulos são coisas do quotidiano e que as outras pessoas têm mais dificuldade em compreender o impacto negativo e intenso que têm na pessoa com misofonia. Nomeadamente o mastigar ou o tic-tac dos relógios. Imaginem por exemplo todas as situações ocorridas em torno das refeições por causa do mastigar. Pelo menos três vezes ao dia (i.e., pequeno almoço, almoço e jantar), seja em casa, escola ou trabalho, pode levar a vários episódios negativos e impactantes na vida da própria pessoa e de outros com quem vive e convive.
Depois precisamos de ajudar a própria pessoa a como lidar com estes estímulos sem que seja através do evitamento, uma estratégia habitualmente usada, para além da utilização dos fones com cancelamento de ruido. Para além disso, as pessoas com misofonia estão muito frequente e constantemente tensas. E como tal, é importante poder introduzir uma estratégia de relaxamento progressivo muscular ou outro equivalente e que a pessoa possa desenvolver no seu quotidiano e de uma forma simples, até porque vai ser necessário. Também será necessário ajudar a pessoa a não estar tão frequentemente num estado de hipervigilância, até porque vai desencadear com maior facilidade todo estes processo e aumentar o impacto negativo das experiências já por si desagradáveis. Mas também por usar metodologias comportamentais de contra-condicionamento, uma técnica comportamental comum, que envolve o emparelhamento de um estímulo que evoca um comportamento específico com um comportamento que é incompatível com ele. O contra-condicionamento para a misofonia envolve o emparelhamento de um estímulo auditivo positivo (e.g., música) com o estímulo condicionado negativo (frequentemente reduzido em intensidade) (e.g., mastigação) enquanto induz o relaxamento fisiológico incompatível com a resposta típica de tensão evocada quando se encontra um estímulo (e.g., através de relaxamento muscular progressivo). Ou então, a terapia de reeducação do zumbido (do inglês Tinnitus retraining therapy), que é um tipo de tratamento que visa diminuir a intensidade das reacções negativas através da exposição a um som contínuo de banda larga de baixo nível, em que a pessoa tem níveis variáveis de controlo sobre o ambiente, os sons utilizados e a duração da exposição ao som.
Estas e outras situações que ocorrem em torno do espectro do autismo, tal como a própria condição, continuam a ter necessidade de mais e melhor informação e sensibilização na sociedade, mas também junto dos profissionais de saúde. E perceber-se que estas e outras situações ocorrem ao longo da vida e não somente em crianças e adolescentes. Sendo que existe e cada vez mais e melhor desenvolvidos protocolos de intervenção clinica, seja psicológica e médica para lidar com estas situações.

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