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Foto do escritorpedrorodrigues

Mesa para um, por favor!

Espero que não me convidem para ir almoçar com eles!, disse Carla (nome fictício), dois dias antes de ir começar a trabalhar no seu primeiro emprego. Já na escola tinha bastante dificuldade, acrescenta. O refeitório era uma enorme confusão. Desde a saída da aula do fim da manhã até ao inicio da primeira aula da tarde, todo aquele tempo era um verdadeiro suplicio!, acrescenta. Preferia não comer. E nem era assim tão complicado porque a medicação que eu fazia para o défice de atenção também me tirava o apetite, continua. E além disso eram muitas as vezes que estava sem comer ou até mesmo beber água e nem sequer notava. Se não me perguntasse não me lembrava. Talvez por isso fazia tantas infeções urinárias. Pelo menos foi isso que a ginecologista referiu, diz. José (nome fictício) diz que prefere levar consigo a comida que ele próprio cozinha e opta por comer no intervalo do trabalho no carro. Procura chegar sempre cedo para encontrar lugar em frente ao escritório. No seu trabalho o sitio para comer não é muito grande o que faz com que se concentrem muitas pessoas. Fora do escritório não há espaços adequados, apesar de haver um parque, mas que José diz que é frequentado por muitas pessoas ao longo do dia. As primeiras vezes que tentei comer na copa foi um desastre, refere. Engasguei-me por duas vezes. A ansiedade era mais do que muita. Por três vezes acabei por ter de vomitar durante a tarde. Não tinha feito a digestão e quase que tinha engolido a comida, continua. Ambos concordam que as pessoas fazem imensas coisas diferentes durante as refeições. Há quem não pare de falar, diz Carla. E aqueles que quando querem que nos falemos nos dão cotoveladas?, refere José. Carla diz que também já lhe aconteceu e que das primeiras vezes ficou à espera que a pessoa lhe pedisse desculpa por a estar a bater. Mas depois de algum tempo e de ver algumas pessoas a fazer o mesmo no refeitório depreendeu que fosse um sinal para a outra pessoa falar. E os que estão sempre a receber chamadas!?, diz José. E que ainda por cima fica a falar na mesa enquanto estamos a comer, acrescenta Carla. E pior ainda quando começam a discutir com a pessoa ao telefone, refere. Para mim ainda assim é o ruído do mastigar, diz José. Se há pior coisa que me podem fazer é isso. Já em casa dos meus pais é a mesma coisa. E todos pensam que eu sou uma pessoa muito picuinhas, concluiu. Já para mim o pior é ter alguém a comer na minha frente, refere Carla. Mesmo quando a pessoa não é conhecida. Nunca me atrevo a levantar a cabeça, refere. Mas fico com a sensação que a pessoa de vez em quando deve ficar parada a olhar para mim. E a pensar porque é que eu nunca levanto a cabeça. Por vezes chega a ser tão difícil que nem como tudo só para me levantar mais cedo, concluiu. Tenho percebido que as pessoas lá no escritório aproveitam a hora do almoço para resolver coisas de trabalho, diz Carla. Não sei como conseguem?, questiona-se. E ainda conseguem perceber o que a outra colega da ponta da mesa lhes está a dizer enquanto acabam por enviar uma mensagem ou um e-mail pelo smartphone. Uma verdadeira confusão! Não aguento tudo aquilo. Chego ao fim do almoço e estou mais cansada do que quando acordei, acrescenta. Tenho de fazer alguma coisa diferente, propõem. Por isso é que eu passei a trazer comida de casa e ir comer para o carro, refere José. Nem a estratégia de colocar a minha mala na cadeira da frente resulta, refere Carla. Ainda um destes dias acabei por me aborrecer com uma colega minha. Ela perguntou-me se eu podia tirar a mala para se sentar. E eu disse que não tinha sitio onde colocar a mala. Não sabia o que lhe havia de dizer, quando na verdade lhe queria ter dito que fosse procurar outro sitio. Mas ela insistiu. E que eu poderia colocar a mala na minha cadeira. Ao que lhe disse que se fosse para colocar na minha cadeira nem tinha colocado na cadeira da frente. Saiu dali a resmungar e o resto da mesa ficou a olhar para mim. Já não consegui comer mais nada, refere. É por isso que tenho de decidir o que fazer. A continuar assim não consigo aguentar, concluiu Carla. E depois ficam a pensar que por eu ser autista não quero estar com as pessoas, diz José. Já em minha casa não param de dizer isso e que tenho de mudar, acrescenta. Mudar para quê? Mudar para quem? Para as outras pessoas?, questiona-se José. Para os outros que nem sequer se dão ao trabalho de perceber aquilo que eu sofro pelo menos duas refeições por dia?, continua. As pessoas não conseguem perceber para lá da sua forma, refere Carla. Mesmo que não saibam o que se passa connosco podia ao menos respeitar, continua. São horas de ir almoçar, diz José que gosta de cumprir os seus horários. Talvez possamos almoçar juntos?, pergunta a Carla. Podemos é tirar o som do Skype, o que achas?, pergunta-lhe. Excelente, bom almoço!, diz-lhe.


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