E o seu contrário também é verdade - Se não procurarmos, não vemos. Seja a asserção bíblica do titulo feita por Mateus ou o comportamento de alguns profissionais de saúde na sua prática clinica de não olharem para lá daquilo que a luz da sua sabedoria lhes dá. O certo é de que no comportamento humano há muito que nos pode escapar quando a nossa sensibilidade e humildade para colocar hipóteses e nos colocarmos igualmente em causa não é usada. E nas Perturbações do Espectro do Autismo (PEA) isto ocorre com bastante frequência. Seja porque ainda há muitos profissionais de saúde que continuam a pensar no Autismo à luz de um conhecimento ele próprio já ultrapassado. Mas também porque no Autismo a existência de possíveis e múltiplos outros diagnósticos associados é grande. E no caso da Perturbação de Stress Pós-Traumático parece haver evidência suficiente de que há um grande número de situações em que esta pode não estar a ser identifica no Espectro do Autismo. Seja enquanto diagnóstico que ocorrem em comorbilidade mas também enquanto traço comportamental e que justifica muito do sofrimento ocorrido nas pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo.
Muito frequentemente a situação de Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD) reactiva nas pessoas a ideia de um antigo combatente de guerra. Este pensamento parece quase ele próprio um flashback, tal como aquele que ocorre com determinada frequência nas pessoas com PTSD. Esta ideia ocorre até porque durante muitos anos, seja em Portugal, devido à existência da Guerra Colonial, mas também em outros pontos do globo, devido a outros cenários de guerra (e.g., I e II Guerra Mundial, Guerra do Golfo, etc.). Temos um número enorme de pessoas, homens e mulheres que combateram e participaram em situações de guerra e que regressaram às suas casas e vidas mas afectados severamente do ponto de vista psicológico, nomeadamente com PTSD. Mas não só os que combateram. Também aqueles que são considerados as vítimas, os cidadãos dos locais que estão em conflito. Ou os companheiros/as das pessoas que combatem, etc. A dimensão das pessoas afectadas e com a possibilidade de desenvolver um quadro de Perturbação de Stress Pós-Traumático é maior.
Mas se pensarmos que estas situações não ocorrem apenas em situações de conflitos bélicos mas também em outras situações de catástrofes, nomeadamente catástrofes naturais, ou em situações de emergência. Começamos a pensar que as situações que podem desencadear uma PTSD são maiores. E também começamos a pensar que a situação actual que vivemos de pandemia devido ao Covid-19 pode ela própria ser uma situação causadora de PTSD ou de desencadeamento do agravamento de sintomas em pessoas que já tinham esse mesmo diagnóstico ou traços comportamentais.
Na Perturbação de Stress Pós-Traumático falamos da mesma quando se verifica, em crianças a partir dos 6 anos de idade, mas também em jovens ou adultos, uma exposição a um episódio concreto ou ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual em uma, dentro de um conjunto diferente de formas. Mas também da presença de um (ou mais) de vários sintomas intrusivos associados ao evento traumático, começando depois de sua ocorrência (e.g., lembranças intensivas angustiantes, sonhos angustiantes, flashbacks, sofrimento psicológico intenso, etc.). E um evitamento persistente de estímulos associados ao evento traumático, começando após a ocorrência do evento. Conjuntamente com alterações negativas nas cognições e no humor associadas ao evento traumático começando
ou piorando depois da ocorrência de tal evento. E alterações marcantes na excitação e na reatividade associadas ao evento traumático, começando ou piorando após o evento.
No entanto, e apesar dos critérios de diagnóstico existente, quando penso na vida das pessoas e principalmente de algumas pessoas, fico a pensar no como é que determinados acontecimento poderão marcar de uma forma mais ou menos traumática a vida da própria pessoa. Ou seja, acontecimento quotidianos que parecendo não estar enquadrados naquilo que são as descrições existentes nos manuais de diagnóstico para a PTSD, possam ter eles próprios características que conferem um trauma vivência na vida da pessoa. E nestas situações e pessoas especificas penso naquelas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo.
Ter autismo às vezes pode significar ter de suportar uma conjunto infindável de eventos traumáticos, e a partir de uma idade precoce. E para muitos, esses eventos podem resultar numa Perturbação de Stress Pós-Traumático. Não estou com isto a querer significar que todo e qualquer comportamento que possa ser observado na pessoa com PEA possa ou deva ser diagnosticado ou diagnosticavel. Há cada vez mais evidência seja do ponto de vista clinico mas também cientifico de que parece haver uma intersecção maior entre os circuitos da PEA e da PTSD. Ainda assim, se pensarmos naquilo que é a vida de uma pessoa com autismo que desde criança se vê num mundo que tem dificuldade em compreender e a própria a ser compreendida. Mundo este repleto de estímulos sensoriais diversos que a invadem e causam dor e sofrimento. Das inúmeras situações de vida ocorridas ao longo do desenvolvimento de bullying, seja na escola mas também no local de trabalho. As situações que ocorrem na vida da pessoa com Perturbação do Espectro do Autismo são muitas, intensas e frequentes ao ponto de serem consideradas causadoras de uma Perturbação de Stress Pós-Traumático.
Se durante séculos, sabemos que a guerra, abuso, desastres naturais e perdas inesperadas e a morte muda profundamente as pessoas e que mulheres, crianças, idosos e em particular as pessoas com perturbações do neurodesenvolvimento são as aqueles com maior probabilidade de serem vitimas. No entanto, é apenas nos últimos 25 anos que se começou a explorar as características sobrepostas do que atualmente é conhecido como Perturbação de Stress Pós-Tarumático (PTSD) e Perturbações do neurodesenvolvimento - uma categoria que inclui a atenção altamente prevalente e amplamente conhecida de Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA), Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimentais (DID), Perturbação de Aprendizagem Especifica e perutbação da fala, comunicação, e funcionamento motor. À primeira vista, essa família de diagnósticos parecem ter efeitos difundidos no cérebro e no desenvolvimento. Para além de se presumir que as mesmas estão presentes desde o nascimento e como são são principalmente tidas como hereditárias. E a Perturbação de Stress Pós-Traumático se entende como decorrente de um evento traumático externo (ou eventos) para ativar uma característica de reexperiência, evitamento emocional e entorpecimento, hiperexcitação / hipervigilância, cognições negativas sobre si e o futuro, apego desorganizado e até dissociação - a defesa psíquica de se desconectar da realidade.
O certo é que com o reorganização trazida pela DSM 5 passou a ser possível olhar para as perturbações mentais de uma forma diferente e olhar mais para um produto dinâmico e que interage entre os diferentes diagnóstico e não apenas numa visão categorial. E isso leva-nos a pensar que as pessoas que se enquadram dentro das Perturbações do Espectro do Autismo, perturbação de Ansiedade e Perturbação de Stress Pós-Traumático são um grupo bastante significativo de pessoas, crianças, jovens e adultos e que importante poder compreender melhor.
Por exemplo, o João (nome fiticio) é um rapaz de 4 anos e 7 meses de idade, trazido por sua mãe para avaliação diagnóstica abrangente. As principais preocupações da mãe são que ele não se importa com ela, ou seja, que ele é constantemente desafiador. A mãe observa que A primeira resposta dele para ela é "sempre" negativa e que o relacionamento deles é contraditório "constantemente": "Ele diz 'não' mesmo quando quer dizer sim". Quando perguntada sobre o que ele gosta de fazer, a mãe responde: "chatear-me". A mãe relata que ela nunca é capaz de apenas relaxar e gostar de estar com o filho. Ele diz a mesma coisa repetidamente, por exemplo, constantemente perguntando se pode ir ao parque para jogar ou querer assistir os mesmos vídeos repetidamente. Ele senta-se na cama e balança o corpo para frente e para trás, muitas vezes por horas antes de adormecer à noite. O João resiste para abraçar a mãe e parece evitar o contato visual. Ele muitas vezes falha em responder a ela, "quase como se fosse surdo", mas é hipersensível ao ruido. Os barulhos altos e imprevisíveis provocam agitação e às vezes até raiva e agressão. Ele bate na mãe quando ouve um barulho alto, mesmo se veio de um apartamento vizinho ou de fora, e não havia maneira de que ela poderia ter sido responsável por fazer o som. A Mãe também relata que o filho frequentemente "mente" às vezes para evitar punições, mas às vezes sem nenhum objetivo, mesmo quando é óbvio que ele é apanhado. A mãe dá o exemplo de se recusar de ir à Wc, mesmo quando é óbvio que ele precisa, e continuando a negar que teve um acidente depois de urinar e defecar nas calças. A angustia especialmente quando o João coloca as mãos nas calças e as suja e depois suja a casa. Em contraste com o comportamento de João em relação a ela, a mãe relata que ele é excessivamente amigável com estranhos, iniciando conversas e partilhando detalhes com pessoas aleatórias nas lojas. Ela relata estar preocupada que ele irá "Sair com estranhos.". O João frequenta a pré-escola. Ele participa de projetos estruturados e atividades e está muito ansioso pela atenção de seus professores. No entanto, ele parece ignorar os seus colegas de turma ou tenta controlar as brincadeiras.
Esta descrição parece deixar antever um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas também todo um conjunto de situações de vida que muito provavelmente se irão tornar em vivências traumáticas. Seja para o João mas também para a sua mãe. E não só, porque alguns relatos que não constam na descrição mostram que o João desde cedo viveu ele próprio um conjunto de situações de vida que leva a colocar como hipótese para além de PEA a existência de uma situação de Perturbação de Stress Pós-Traumático.Ainda que se possa pensar que a existência de uma Perturbação do Espectro do Autismo surja como um factor de vulnerabilidade para o desenvolvimento de uma Perturbação de Stress Pós-Traumático. Independentemente disso é fundamental no trabalho com pessoas com PEA ou com suspeita de PEA que se esteja atento a todo um conjunto de sinais que nos pode reenviar enviesadamente para outras explicações.
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