Já tinha tirado a carta de condução e terminado a minha segunda licenciatura quando me apaixonei, diz Raul (nome fictício), de 42 anos. O meu pai não viveu até essa altura e não pode ver que afinal eu não era homossexual. Desde os 14 anos que o vinha a ouvir perguntar se eu tinha uma namorada! refere. Até tinha pedido a uma auxiliar lá da escola para me vigiar. A minha mãe parecia mais preocupada com o facto de saber que eu via pornografia, acrescenta. Uma vez disse-me que estava preocupada que eu me tornasse num desses depravados sexuais!
Se por um lado algumas coisas começaram mais tarde a acontecer, outras iniciaram-se mais precocemente. Foi assim com a linguagem, que só comecei a falar quase a completar os quatro anos. As pessoas à minha volta pareciam preocupadas comigo. E os médicos encolhiam frequentemente os ombros dizendo que parte da responsabilidade era dos meus pais. Eu ficava ainda mais ansioso e frustrado com o facto de lhe estar a fazer sentir isso e penso que ficava pior! diz. Não sentia propriamente necessidade de falar, e por isso não falava. A lógica para mim parecia-me suficiente e não entendo porque as pessoas se questionavam tanto, ao contrário de outras coisas que para mim me fazia muito mais confusão.
No caso da sexualidade, o meu interesse pela área surgiu na altura certa, penso! diz. Os meus colegas na escola não paravam de falar sobre isso. E antes deles, já elas tinham começado a falar. Como para mim era fácil ficar ao pé das pessoas e ouvir e como elas não se incomodavam, ou não davam pela minha presença. Com isso consegui fazer um levantamento exaustivo de informação acerca do que lhes parecia interessar. Claro que fui procurar certificar-me nas fontes certas e por isso passei algum tempo na biblioteca da faculdade onde o meu pai dava aulas. Tendo em conta que ele era enfermeiro, a biblioteca estava bastante munida de boa informação cientificamente falando. E lá não se importavam que eu lesse livros sobre a sexualidade humana. Na verdade até pareciam achar piada! comenta.
Quem me ouvia falar aos treze anos sobre sexualidade pensaria que eu era um connaisseur ou um duque de Valmont nas artes do amor. Mas não era, ou pelo menos não o considerava. E quando me perguntavam quando tinha sido a minha primeira vez, houve uma altura em que respondi na faculdade de enfermagem. E só depois percebi que me estavam a perguntar sobre ter tido relações sexuais. E isso só aconteceu bem mais tarde, ainda que para mim foi na altura certa.
Na faculdade achavam estranho que eu não andasse com ninguém. E se dúvidas houvesse, na segunda licenciatura também não. Perguntaram-me se era alguma questão religiosa, ou promessa que tinha feito. Outros havia que simplesmente me consideravam estranho, tal como já o faziam desde sempre, diz. O que eu não percebia, ou que pelo menos era mais complicado de perceber, era como é que as pessoas podiam dizer que amavam este ou aquele. Assim como tinham ido para a cama com alguém que tivessem acabado de conhecer. Para mim aproximar-me de alguém, simplesmente quebrar a barreira da proximidade interpessoal já era um enorme desafio. Quanto mais o toque. Ou o que dizer à outra pessoa. E se aquilo que queria dizer seria aceite ou não. Estar com alguém, ou de forma mais pragmática, ser namorado de alguém era algo que precisava de aprender a ser, assim como tantas outras coisas. Tinha de ser primeiro para mim, antes de ser alguém para o outro. E ser alguém para mim foi algo que levou algum tempo! diz.
E ainda que a sexualidade não seja "corpo", ela não deixa de passar e ser expressa no e pelo corpo. E essa entidade, o corpo, durante muito tempo foi isso mesmo, um corpo. E só depois passou a ser o meu corpo. O que fez toda a diferença, até para que passasse a ser um corpo que eu partilhava com outra pessoa. Nunca poderia partilhar nada que não sentia ser meu. E como tal, grande parte da minha puberdade foram acontecimentos biológicos, hormonais na maior parte das vezes. A componente significado estava mais ausente. Ou quando estava tinha uma valência maioritariamente negativa ou desconhecida, que no meu caso é muito semelhante por causa da imprevisibilidade, refere.
Partilhar-me preciso primeiro de o ser. De me apropriar. De me sentir gostável. E durante muitos anos nem sequer me senti gostado. Já para não mencionar a dificuldade que tive até perceber o que gostar poderia significar, acrescenta.
Se pudesse voltar atrás gostaria de dizer a algumas pessoas que sei que pensavam que por eu ser uma pessoa autista não tinha amigos, não desejava estar com outras pessoas ou até mesmo ter uma relação amorosa, que não ajudaram em nada ao longo do processo! Pensem como é que alguém que passa os dias a ouvir estas e outras coisas semelhantes se haverá de sentir? Com vontade de ter uma relação? Um relação amorosa? Confiar em alguém? Ou até mesmo em si próprio? desabafa.
Mas também não quero que fiquem com a ideia de que apenas tive a minha primeira relação amorosa aos 26 anos de idade por causa das pessoas, principalmente as pessoas não autistas que foram estando na minha vida. Seria muito fácil atribuir essa responsabilidade às pessoas não autistas e ao seu estigma e enorme ignorância sobre o autismo e muito mais. Também seria uma forma de me desresponsabilizar daquilo que é a minha vida e projecto de vida enquanto Pessoa. Certamente que as questões da responsabilidade das outras pessoas me foram criando desafios. Mas quero sublinhar que ter chegado aos 26 anos para ter a minha primeira relação amorosa é uma escolha minha e que foi derivado de todo um conjunto de tomadas de decisão minhas, e com base no que fui pensado e sentindo. E disso eu não abro mão. Até porque se o fizesse estaria a dar razões para a ignorância de muitas pessoas sobre o autismo e a vida das pessoas autistas, conclui.

Comments