Alguns de vocês ainda se haverão de lembrar do jogo da macaca. Um jogo em que tinhamos um conjunto de pessoas alinhadas em fila com as costas dobradas como o homem de polo azul. E onde cada membro da outra equipa tinha de saltar sobre essa mesma linha e procurar não cair das costas do membro da outra equipa. Ganhava aquela equipa que conseguisse ter mais membros da sua equipa encavalitada nas costas da equipa oponente e não cair durante algum tempo.
E porque me fui lembrar disto? Por causa do titulo da noticia do Jornal Público no dia 21 de março para a celebração do dia Mundial da Síndrome de Down - "Manel saltou as barreiras impostas pela trissomia 21".
A primeira leitura causou-me logo uma sensação de desagrado. Até porque lido com ela no dia a dia. Quantas das pessoas que acompanho na clinica não ouviram já algo semelhante? Sejam pessoas autistas, phda, poc, esquizofrenia, ansiedade, depressão, etc. O Manel da noticia do jornal tem um diagnóstico de Síndrome de Down. E diz na noticia que tirou a cara de moto aos 14 e a de carro aos 18, casou e quer ter filhos com a Inês, sua companheira. E há muitos outros Maneis e Marias, com este e outros diagnósticos. E que saltam as barreiras, mas são barreiras impostas pela sociedade.
Estamos quase a chegar a 2 de abril, dia em que iremos celebrar o dia mundial do autismo, e infelizmente iremos ver algumas outras noticias semelhantes. Pessoas, homens e mulheres autistas que saltaram as barreiras e continuam a salta-las ao longo da vida. Mais uma vez as barreiras impostas pela sociedade.
Por esta altura muitos de nós já sabem alguma coisa desta e de outras condições e diagnósticos. Até já sabem onde as procurar na internet e nos manuais de diagnóstico à venda na FNAC. Vários de nós sabem que cada vez mais precocemente se diagnosticam várias destas condições, nomeadamente a Síndrome de Down e o autismo. Ainda que contiuem a haver muitas outras pessoas, no caso do autismo, que continuam a ser diagnosticadas tardiamente na vida. E já agora, o que vão dizer destas pessoas? Que também saltaram as barreiras impostas pelo autismo? E que o facto de terem sido diagnosticadas tardiamente é devido à sua condição?
Mas continuando. Muitos de nós também tem conhecimento que as intervenções médicas, psicológicas e psicossociais, são cada vez mais e melhor estudadas e adaptadas às pessoas e às suas condições e necessidades. E como tal, estas pessoas têm melhor condições para prosseguir o seu projecto de vida, a nível pessoal, social, escolar, formativo e profissional. Contudo, também sabemos que apesar de todos estes desenvolvimentos cientificos, humanistas, sociais e legislativos, ainda contiuamos a observar que um número significativo destas pessoas continua a ter um conjunto de barreiras a ultrapassar, saltar, contornar ou evitar. E os Maneis e Marias destas histórias também saltam as barreiras impostas pelas suas condições?
São as barreiras de conseguir encontrar um profissional de saúde que consiga adequadamente reconhecer o seu diagnóstico. Além das barreiras económicas para muitas destas familias em pagarem esses mesmos serviços, seja de diagnóstico, mas também das multiplas terapias que precisam de fazer ao longo da vida. Além das barreiras em encontrar uma escola que seja mais indicada e adaptada à condição do estudante com esse diagnóstico. Para além da necessidade de ter de convencer vários professores e outros profissionais da condição e das necessidades do aluno para que possam ser implementadas as acomodações necessárias à sua aprendizagem e desenvolvimento. Já para não falar dos multiplos processos burocráticos ao longo da escolaridade obrigadtória, com os variados relatórios dos profissionais de saúde e educativos. E aqueles que procuram continuar a sua formação para o ensino profissional frequentemente ouvem que na escola profissional as acomodações não podem ser iguais ao ensino regular. E os que finalizam a sua escolaridade obrigatória e pretendem seguir apra o ensino superior percebem que têm de voltar a enfrentar todas estas e mais outras barreiras, até pelo desconhecimento de vários docentes universítários das suas condições e necessidades. E as barreiras contiuam, neste caso para integrar o mercado de trabalho. Sejam as barreiras das entrevistas de emprego, mas também a dificuldade em verem implementadas as devidas acomodações no seu local de trabalho. E como todas estas barreiras até então são em alguns casos intransponiveis, ou mesmo que sejam ultrapassadas, as pessoas continuam a ver como muito dificil assegurar o seu contrato de trabalho. A habitação própria e a possibilidade de continuarem a construir o seu projecto de vida continua do outro lado dessa tal barreira. A mesma que se diz que pertence à condição da pessoa. O que na verdade é o mesmo que dizer que a barreira é a pessoa.
Quando é que iremos conseguir ultrapassar esta barreira? Quando é que iremos parar de dizer que as barreiras encontradas são derivadas das condições das pessoas? Quando é que as pessoas sem estas condições irão pensar de forma diferente? Acredito que seja uma barreira grande e que tem vindo a ser construída ao longo de todos estes anos na história da humanidade. Mas rstou certo que as pessoas sem estas condições e diagnósticos irão ser capazes. Ajudaria muito se pudessem dar ouvidos às pessoas com estas condições e daignósticos. E pudessem implementar várias das coisas que dizem. Seriam muito mais facil para que ambas as equipas pudessem continuar a jogar ao jogo da macaca. Porque até agora o jogo que se joga é uma macacada!

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